segunda-feira, 10 de março de 2008

Razão nenhuma

as cicatrizes que me vestem carregam o tempo em que não existias, o tempo das asas de dinossauro nas noites suplicantes e dos fantasmas vulneráveis nas casas vazias, onde me fiz e refiz em fibra de vidro e monumentos de papel até reparar que a juventude é um pássaro a jacto.
poro a poro, em permanente desgaste e total consciência me construí. e espero avançar na obra, com a tua ajuda e mais uma ou outra frivolidade, sem ter de armazenar o espanto que a cada manhã o mundo me provoca.
resumo-me ao tacto quando te aperto a mão.
mas sinto que nessa acção simples se espalmam todos os meus gestos, os que parecem heróicos e os que exalam cobardia, os que merecem um sorriso e os que deviam morrer.
e absorvo-te o rosto e a medida certa dos sonhos, quase todos tão incertos como uma nortada de setembro, uma cascata de beijos ou um trilho pedestre numa montanha em lenta mas imparável mutação.
só então percebo que temes o que desejas porque sabes o que não queres. e consideras apaziguar-me com uma revolução de pureza que cale a minha prudente impudência e resolva a contradição em carne e osso e cabelos que sou.
a vida ocupa-te demais, dizes.
o meu corpo fala por mim, digo eu.
e encolho-me entre palavras perdidas, aos pés da cama. caminho sem me mover e danço dentro do que penso, procurando mais um golpe de sofrimento que me inspire um verso.
sei que não conheço a moderação, que em mim até a ternura é voraz, que em mim o gelo arde e os arbustos crescem e crescem até se tornarem sequóias. que em mim as manifestações divinas se desvalorizam na matéria da poesia e as gotas de suor formam sulcos na pele, abrindo-se em cursos de água de múltiplas direcções, sem nascente nem foz.
mas sei também que este amor é um glorioso templo, uma tarde de morangos crocantes, uma dentada no calendário, um desenho a carvão, com abraços recortados na luz, oníricos e amantes de si mesmos.
e razão nenhuma. só inefáveis altares onde ajoelhar.

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