domingo, 24 de outubro de 2010

Fosso

recosto-me e deixo a demência soprar-me poemas.
sentada vejo-a alastrar
como se intenção e som tivesse
ébria de si própria a cobrir a aridez do meu silêncio.

e percebo que há respiração nos meus versos.
vivem de cal e fumo puro
raiva a extrair o açúcar à liberdade
excessos em lágrimas, combustões que se sonham regressos,
e este fosso entre o meu corpo e o teu.

recosto-me com um copo de vinho
embrulhada em seda
olhos moles de não te ver
dedos doridos de arrumar lenços
e a faca fina a gritar-me
que nem toda a minha mágoa tem o teu nome.

um adeus rumina nos rios de palavras que troco comigo.

sábado, 23 de outubro de 2010

Em lado nenhum

estamos em lado nenhum
agora.
eu lavo a ferida repetidas vezes no charco da memória
enquanto tu folheias revistas
e imploras solene silêncio.
já contavas com os efeitos secundários deste remédio,
eu só agora reparo que não tinha assim tantos planos
que possa não ter tempo para cumpri-los,
mas que não terei tempo
para esquecer o pássaro vertiginoso dos teus olhos.

e tento cuspir o que me arde,
e detonar o que me cura
e respirar mais uma noite.

estamos em lado nenhum
agora.
eu divirto-me a passar
e passo os dias a disparar dardos de sangue contra o vento.
tu progrides em linha recta
nas plateias
e nos hangares
nos elevadores e nos mais quotidianos gestos
mas inadvertidamente
espreitas o passado nos reflexos do espelho.

estamos em lado nenhum
agora
eu cruzo os braços, incendeio os livros, trituro as ilusões.
e só quero sair daqui.
tu rogas silêncio e dizes,
não se pode viver à míngua do enlevo de ontem.
e eu digo, ontem chegou cedo demais.

estamos em lado nenhum
agora é a minha cabeça o melhor lugar que conheço.