domingo, 23 de janeiro de 2011

Clamor

levo-te à praia,
as nossas mãos coladas os pés descalços o frio nos ossos.

é inverno e a ternura invisível no infinito do cosmos.

sabes tudo o que não fazes e gostarias,
o que te sobra no coração e há muito deveria estar extinto.
mas para dizer só encontras o avesso do que sentes.

falas das feras dos dentes do álcool da razão
da neurose social em que vivemos,
das fontes de prazer imediato.
a tua infantil cartilha de valores
a estatelar-se contra a minha inconsequência.

temes a velhice e as dores de cabeça.
as nuvens que se estendem na tua íris
de transparência agasalhada
vendam-te ao sol de janeiro,
o meu corpo em silêncio lembra-te o beijo do rodin
e em surdina ouves dEUS:
nada nunca termina a martelar na tua vontade férrea de mudança.

já na cabana brindamos ao passado.
a minha esperança a prometer o impossível,
a tua sede a contratar os serviços do diabo no fundo do copo.
e o futuro como paisagem de turner,
desfocado a afiar as garras
neste instante em que somos almas concretas
a tocar-se sem horizonte.

o peso do mal que me fizeste tem dez arrobas de profundidade, dizes. e eu digo,
a crueldade é sensual como a preguiça.

deitamo-nos então com essa herança na carne.
o pó celestial que até aqui nos trouxe
faz-se ode branca no tempero do amor
e o suor desliza-nos nos poros
como se adivinhasse o estio que desejámos para os nossos olhos
livres de idílios sonhados que jamais terão lugar no mundo.

e dormimos em concha
com o clamor repetido das ondas aninhado no peito.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A luta

a fantasia definhou, amor,
os morangos já não descem pelo teu corpo,
deus nenhum nos convida para a sua ceia de fruta nova
e elfos gordos
nuvens trampolins e pratos de sal
mas os meus dedos caminhantes ainda exultam no teu rosto.

lambo a tinta das fotografias
e delas recorto o aroma distante da tua boca.
mordo-me entre as paredes vazias,
aliso-me como camisa
de pele nua,
danço piano, a carnivalsa sem tempo,
e páro antes que desapareça.

volta para casa, apetece-me dizer-te, apertando os lábios
contra a mordaça do silêncio, insone de pés gelados
e admirando a juventude com que ensaboas o olhar
antes de o passares pela torneira da ilusão.

e amo esta luta sem sangue e calada onde
à noite te procuro em todos os bares
e aliviada me sinto por não te ver,
sem sair desta cadeira de pau brando.

hesito. morro. venho-me às mãos do vento.
e demolho o coração em copos de vinho tinto.

sei que é cedo para a primavera embora já oiça
o seu murmúrio à minha porta.
mas não sei se a deixe entrar.
sou da terra como erva
e ainda me lembro de quando era um cadáver diferente,
firme de segredos e olhos secos.

hoje ainda prefiro ser este, amor,
que a lua vê e este telhado sem estrelas guarda.

ajusto o meu desejo ao teu e faço login.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Em paz

poesia é ofício artesanal (cesto de vime, bordado a cor:
cada verso contém a vida mas demora a revelar-se,
quase tanto como ela a consumir-se.

e eu que nunca deixei de ser tua e portanto minha
jamais poderei ser também,
aqui permaneço redundância
a pingar sobre o lago de narciso e a dormir
como a bela, sorrindo
só por guardar entre os dentes a memória do teu beijo –
esse instante de veludo em que as palavras, minhas e tuas
se misturaram, inscrevendo amor eterno
no aço branco das janelas.

sempre na mira da solidão,
de tambores no peito e consciente de que
toda a promessa de eternidade é fugaz
e todo o poeta divino, ardentemente desejo largar tudo e
tornar-me música, só para planar na tua sala.

e aprendo que o amor é oferenda
apenas a quem não teme o silêncio e se inclina
perante a clareza simples das flores,
em serena alegria acolhendo a neve nos cabelos.

o sonho recolhe-se à crosta materna
de que a minha sofreguidão se veste.
olho a dispersão do vento, em paz,
lanço as sementes do inefável
ao coração e ouço o sangue correr – agora que
nada mais em mim corre.

e ergo-me entre as montanhas.
consegues ver-me?

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

É isto

e a felicidade é isto. este cigarro em jejum, olhar o céu esparramado sobre os telhados, operários em passo de corrida para a estação, ocasionais gaivotas a roubar-me o aceno aos melros, candeeiros trôpegos sobre o parque de estacionamento.
e a paz dentro de casa e da alma.
as crianças dormem ainda com os seus sonhos de algodão e plástico, sem saberem que são a forma mais banal de obra de arte, desejo de criação tornado carne,
como poemas à espera de serem cantados.

e então o cigarro termina.
empunho a espada e o verbo e a ansiedade força-me ao movimento. preferia ser guiada pela paixão, mesmo recordando quanto doi. em vez disso fabrico alegria todas as manhãs, e pergunto-me até que ponto devo preocupar-me
com a miséria ou a dor dos outros.

antes da vida me ter estragado, a minha mãe sabia tudo, eu confiava nela, o mundo inteiro cabia numa canção de embalar. e a voz excessiva do meu pai mantinha-me nas margens dos abismos: o amor impedia-me de cair.

agora hesito entre o entusiasmo e a esperança. sei que não podem coabitar e a escolha tolhe-me. mas permaneço alerta.
o resto do meu tempo à vista, a pulsão de respirar.
e o medo como disfarce, da espessura de uma casca de noz
sobre a pele.

o duche faz-me chorar. trago demasiadas memórias aquáticas para resistir a lavar a cinza dos olhos. o espelho encontra-me de rosto parado e lábios conscientes,
tudo o que fiz vincado a sul de cada extremidade.
mas ainda quero vencer o dia.

antes da vida me ter estragado, eu podia amar o que quisesse,
até personagens de teatro e troncos de árvores,
até segredos maldosos e fotografias.
e a felicidade tinha nome, sonhos possíveis de todas as cores, absinto eficaz a afogar tormentas. e cães pacientes,
deusas amputadas, quartos de ternura.
saudade nenhuma.

acordo a casa num sorriso de anjo robusto.
e a felicidade é isto. poder ser.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Velas

quando a voragem do mundo nos tiver saciado
seremos felizes.

felizes. raízes cegas às sombras
da ramagem rumo ao sol.
felizes. grãos de areia à solta
no rebuliço da rebentação de agosto.

e esse teu olhar de fio de prata
(que apetece tomar
será sempre horizonte. e a solidão
(todo o espaço onde faltas
ruidosa como outra companhia qualquer
nas velas que hão-de demorar a arder
em cada bolo de aniversário
(na sala sem desejos onde jamais doem os abraços.

à mesa
nata e chocolate e torpor
e almofadas onde cair.