sábado, 20 de março de 2010

Armadilha

à entrada de Outubro, havia raparigas na vindima, colina acima e abaixo de cestos às costas, tesouras de poda e aventais, botas caneleiras e riso fácil.
raparigas quase inocentes, que de noite brincavam ao amor.
raparigas a morder o mundo, incapazes de florescer.
nós, novas, em branca deriva das nossas próprias almas.

o armário de chitas e cambraias coloridas espreitava-nos os gestos balbuciantes.
e eu indagava-te em suspiros, obrando ilusões na pulsão de desejar sentir sem freio, escapando à materialidade opressiva e cinzenta das coisas banais.
ao longe, ouvíamos o murmúrio do rio e os latidos dos cães. e uma poeira luminosa atravessava as frestas dos estores e revertia a penumbra em crinas de fulgor quase estival,
exibindo a voz clara da tua pele.
amo-te, dizias,
desde sempre, para sempre e sempre originalmente.
e eu tremia para dentro.

havia uma cama mole e uma cama dura, que usávamos à vez, muito lentamente.
é verdade, a lentidão é do que melhor me lembro.
ao fechar os olhos, consigo ainda evocar aquele vagar ao crepúsculo ou na madrugada, o ritmo quase imperceptível, aquela contenção tão minha e contrastante com o meu interior de sangue a arfar e cérebro a fervilhar e suor a galope nos poros.
nesse tempo tinha o coração esburacado de desamor, mas cada recanto vazio se enchia aos poucos, muito devagar, como se me seguisse as mãos.
e já nem sabia quem era quando a vida por momentos me apartava de ti e só me restava o teu nome inscrito, gritando ansioso, em cada uma das minhas palavras.
enchia cadernos de lirismo púbere, que por vezes tu ilustravas com os traços oníricos das tuas emoções inspiradas na Antiguidade, pejadas de divindades imperfeitas, umas guerreiras, outras carinhosas, todas ciumentas e vis como os humanos, mas em corpos secos e tão frios e lisos como o mármore.

um dia, por gentileza, permiti que partisses.
e as raparigas quedaram-se mudas como as divindades no armário de chitas e cambraias, destinadas a definhar pouco a pouco enquanto eu e tu finalmente florescíamos no real.
para sempre e sempre originalmente.
como arte em progresso.
e sabendo que o amor não é mais do que uma armadilha fatal.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Vês?

não,
não quero cortar laços,
antes desatar nós.

e preciso da tua ajuda para morrer.
de morte limpa,
olhos lavados,
e nenhum mistério para além da pele.

vês ali aqueles sonhos dependurados,
sangue velho erguido à cabeça,
como coroa ou privilégio,
de repente
descendo aos punhos cerrados?
vês ali aqueles sonhos espalhados,
no chão amontoados
como coisa morta
ou roupa antes da fusão?
aqueles sonhos que em dias claros brilhavam
e definham agora sem onde crescer?

foram meus.
são de mar ainda.
e murmuram:
nenhuma traição justifica não trocarmos lágrimas.
nenhum erro sobrevive ao amor.

eu roo as unhas e respondo
que não há ponte
que sem manutenção
permaneça.
nem mão que acaricie sem desejo,
ou beijo que fale no silêncio,
ou ternura que se imponha à mágoa.
e
embrulho-me num tormento etéreo,
breve como a lua cheia.
e prossigo.

não quero cortar laços,
antes desatar nós.

quando me ajudas a morrer?