terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Falhar melhor

desde o começo, todas as palavras correram sem freio para o lume dos nossos corpos. coladas à pele, perderam o significado e tornaram-se adornos vibrantes, prenhes de sonhos,
porém incapazes de saciar a nossa imensa fome.
nenhum gesto te despe, disseste.
e eu disse: nenhum abraço me consola.
agora trazemos versos vestidos, abotoados a recursos estilísticos tão inúteis como trapos ou colares.
e o impaciente tamborilar dos meus dedos no trânsito continua a léguas da urgência febril que no escuro te toca.
mas tu não sabes.
não podes saber
que não são as mesmas mãos,
estas que trago comigo no banal vagar das horas
e as que, em certas noites nossas, sem meta nem pressa,
procuram ser seda acesa no teu interior.
a cada dia
desejo revelar-te os segredos contidos nos poemas, desembaraçar-te das dúvidas nos cabelos,
parar-me para desmontar as metáforas,
dar-te a mão e caminhar contigo,
juntar pedras inabalavelmente nobres
em vez de nobres vocábulos frágeis

e construir-nos um reino essencial.

mas a memória é tão difusa como a vida concreta,
a poesia etérea e as mãos impuras e demais mundanas
para rasgar a superfície e alcançar o coração.

falho (mas não sei falhar melhor como o beckett).
a minha boca muda ainda beija,
mas falta alegria ao seu riso.
e o sal seca os poros, bordando choro nos olhos
enquanto espero pelo instante exacto
em que o amor se ajoelha para morrer,
humanamente dobrado em espasmos
aos pés do fracasso.

alarde nenhum. ou verbo.
só mágoa. e um rumor de saudade que me diz:
tenta de novo.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Música

assobio de melro, latido de cão,
rugido de tigre, zumbido de melga.
ou canções.
silvo de vento, rufar de tambor,
trinar de guitarra, clamor de gente.
e palavras.
rumor de pistola, uivo de janela,
golpe de asa, frémito de motor.
depois silêncio.

que importa o que oiço se não for a tua voz?

o coração estala-me na boca
qual castanha outonal,
grito fechado no punho,
como a tua emoção
recolhido.
e diz-me
que a tua pele é música.

e música minha é cada murmúrio teu.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Trabalho

há uma casa à chuva onde secretamente trabalho.
todos os dias.
uns correm bem, outros não.

é como outro trabalho qualquer, mas sem ordem programada: tanto mexo nos alicerces como monto armários e penduro prateleiras. mas as minhas mãos não param.
são ferramentas em si mesmas.
embora sentimentais.

em certas tardes preguiçosas, faço pausas mais demoradas
e bebo vinho no telhado, leio poemas no alpendre
e a vida turva-me o olhar.
mas nunca nunca saio do trabalho,
nem mesmo quando entro no teu abraço e descanso.
porque a casa à chuva está sempre em construção

e é frágil demais para resistir ao abandono.
e susceptível o suficiente para ruir sob um sopro de incerteza.

tem de tudo, esta casa.
até um lago, mas às vezes seca. e uma árvore, que definha e cresce ao ritmo da minha respiração. e uma longa escada em espiral... que uns dias subo para beijar o sol e outros desço para cumprimentar os vermes. os mesmos que talvez me comam a boca no túmulo.
ou não.

tem amor, sobre a porta, inscrito.
e obras tuas também,
sem que o saibas, a cobrir o chão e a serpentear pelas paredes.

mas visitas nenhumas.
ainda não.
não enquanto o teu sorriso chorar no meu peito.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

À noite

à noite o teu nome foge-me dos lábios, volátil e sonhador como este fumo branco em que se entrelaça na janela aberta. e mistura-se nos inúteis beijos que me tomam a boca, aqueles que te daria se aqui estivesses.
arranco-os resoluta à carne, atiro-os sem pudor e, antes de fechar a janela, vejo-os esmagarem-se no chão e mancharem de desejo mudo o passeio rente ao prédio.
no ar fica o seu aroma evaporado.
e também a volúpia ansiosa do teu nome a bater no vidro.

tento ignorá-la. e nesse instante endureço.
sou toda quotidiano, o equivalente concreto do tédio onde abstractamente me instalo nas noites sem ti.
depois pego num livro e sou olhos,
como um chocolate e sou estômago,
bebo um trago de whisky e sou fígado,
lavo os dentes e sou relógio a empurrar-me para a cama.

de pálpebras vergadas ao peso da vida, deito-me então a comentar o mundo, alinhavando ideias indómitas,
desconexas e jamais articuladas como enredos.
mas minhas e animais,
a galope
montadas no sangue
até contaminarem as células da narrativa.

à noite
conto-me histórias sombrias
onde tu és uma flecha de luz
desgarrada do tempo
e eu
um arco-íris por pintar.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Teima

tinhas uma colecção de fotografias à cabeceira, rostos e rostos guardados sob o candeeiro de leitura, entalados entre contos e caixas de pulseiras.
nas noites de solidão pegavas neles e tentavas recordar-lhes os nomes sem veres o verso da imagem. os nomes, as idades, os dias que passaram contigo. os gostos. os sonhos. os frutos. as músicas partilhadas. os poemas embrulhados. pedaços dessa sonâmbula irrealidade que te permitia aceitar o tempo e suportar a vida.

depois suspiravas, uma e outra vez, antes de verificares se estavas certa. e o espanto esboçava-se nos teus lábios, quase desenhando um sorriso neles, ao perceberes que os baralhavas.

e que a memória podia ser tudo o que quisesses,
pois não passa de ficção.

eu apareci-te de olhos maravilhados,
mas voltados para dentro.
até me extraíres para o mundo, fui metade do que hoje sou, na cegueira feliz e parcimoniosa de quem sabe que apenas tem o que merece.

mas aprendi contigo a sair de mim.
e depois converti-me ao tamanho de um cartão de crédito.
como paulo maria pedro
apolo vénus e joão. a pulsar no papel mate.
inane, insana, colorida, intencional.
carne lúcida na translúcida pele
que aos teus dedos um dia me vestiu.

ao fim de todo este tempo,
eu ensinei-te apenas a fingir que a vida é uma canção.
lição pobre, mais uma mentira para guardares com as fotografias.
mais uma mentira
toda ligeira, não mais que uma teima,
gananciosamente a desejar-se verdadeira.

como aquela de que o amor é um prémio
e não somente um órgão vital.