terça-feira, 27 de março de 2012

Lembro-me da água toda

comprei-te a camisa
num inédito repente
(nunca fui de te vestir se não de lábios
e pedi-te que a usasses
tão rente à pele como eu
.
fazia-te doer, dizias, o coração
como os quadros do Rothko
(de uma só cor roubada à alma
te feriam os olhos
naqueles dias de dezembro americano
.
não liguei. como poderia
se cada um só pode saber
da sua dor e nunca a tua
me chegou aos ossos
(muito menos à respiração
?
despi-te a camisa
(pintada de fresco
e abri-te túneis de humanidade
ternamente
eternamente
a partir do umbigo
...
lembro-me da água toda
cada gota
cada onda
até
(por fim
alcançar o teu fim
.

terça-feira, 20 de março de 2012

Prefiro os animais sem passado

fremente vai
este dia de primavera
com as suas saias vaporosas,
um só tom de verde a colorir a erva,
a azálea de braços estendidos
e a cerejeira em flor
(que te convida a entrar
como aquela no pátio da modesta casa normanda
habituada ao amor feliz.

levanto as pálpebras para a lua redonda
a despenhar-se dos telhados
sobre as ruas onde se riem
crianças velhos tolos
e passo a mão pela vista.
troco-a por pensamentos
enquanto outra vida se vai urdindo
na minha pele à tua espera
(como penélope a tecer a sós o perdão
que a hora incerta te entregarei.

temo entretanto falar alto
e acordar a tua longa ausência
mas ainda digo
baixinho, prefiro os animais
sem passado às árvores
(eternas como deuses sem estação.

e abraço os teus olhos que em água
dizem, toma-me
como as estrelas perfuram a noite
(enfim.

terça-feira, 13 de março de 2012

Anterior ao pão do dia

agora que já não me dói a memória,
amo cada manhã por usar
como um vestido perfeitamente engomado
à espera de sair
e essa pele na minha pele
enquanto não acordo,
anterior ao pão do dia.

na cama lisa
beijo esse ar abençoado
que ao meu lado dorme
mas pede licença para entrar nos meus sonhos
e antes de pisar o chão
persigo o aroma das flores que se partiram na noite
e faço mais um traço vermelho
no calendário atrás das almofadas.

então solto-me do abraço
e fixo residência em mim
desejando apenas tornar-me mais nítida
ao atravessar a neblina dos teus olhos.

e lavro no rosto o campo da felicidade
(adoravelmente branco,
como esta folha por escrever.

segunda-feira, 5 de março de 2012

O mundo todo para te deitar

nas minhas reais ficções,
sou a projecção verbal do que nem me atrevo a pensar
e enumero
as vezes em que me fingi idiota (era prático e seguro
as cicatrizes acima do tornozelo (chamo-lhes jonas
os sulcos no rosto com o teu nome (dão para plantar oásis
os beijos que me recusaste (retalho-os inteiramente, humanos
os medos atirados para um canto (indiferentes às fotografias.
entro na mesquita como quem vai à discoteca
todas as semanas sem pagar bilhete
nem sequer o consumo mínimo,
e desenlaço um deserto por altar
e estendo tapetes para os joelhos.
e tenho o mundo todo para te deitar
enquanto a água me abençoa o corpo em obras permanentes,
fechado de novo como quando
não me vias.
e digo, não há bairro
alto como esse onde fomos iguais
ao que éramos antes do tejo desaguar no bósforo, dizes tu
(e ignoras o teu amigo de turbante,
cachimbo aceso ao espelho e o coração a transbordar
do copo (como se o amor não coubesse num só mergulho.