segunda-feira, 30 de maio de 2011

Nem meio dilema

nesta montanha onde me sento a agitar ruídos
finjo meditar além dos teus olhos famintos
(cega de palavras perfeitas
no silêncio que o teu vagar me impõe

trago as lições aprendidas
a pele revestida a desígnios morais
nem meio dilema. idealismo nenhum
e o peito em cratera, implodido de amor


como coisa que cura
a minha vida
é este caminho repetido
até ao cume onde me sento por vezes
encontro deus a esvaziar os olhos
e o tempo não passa

segunda-feira, 23 de maio de 2011

É o tempo das raparigas grisalhas

é o tempo das raparigas grisalhas
os ténis de velcro as madeixas
as unhas curtas o amor secreto
a agenda com mais horas que o relógio sem préstimo
o cheiro peculiar

e eu visto-te de lilases e espalho pétalas ao redor da tua imagem.

nesta inocência manchada
cobiço as tuas bonecas e o rosto impossivelmente belo
da florista que não vê os mortos
como eu quando me colo à fantasia
(tudo o que é humano tem limites?

o teu desejo contém dois vocábulos de açúcar
um se faz favor como morangos atirados ao lume
bolsos a transbordar de sonhos
nem um passo sem chão.
eu pago, dizes.

é o tempo das raparigas grisalhas
e a tua boca é uma acendalha nos meus dedos
pranteando em língua estrangeira

ao luar só peço que não morras enquanto vou
à mercearia da atalaia comprar rebuçados.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Arrumo atrás da cama as marionetas

nenhum bocado de mim é teu
a partir de agora
nada mais quero dizer-te
senão que no espelho me resto,
completa na água que a alma me apaga
e se evapora para dentro da moldura
onde ainda ontem te reconhecia.

arrumo atrás da cama as marionetas,
que de certa maneira à noite me abraçam
até me adormecerem o sangue,
embrulhadas de enfarinhado alumínio
para que não mais me falem.

devo-lhes a contenção dos últimos dias
e a jornada impetuosa
que ao teu colo me tirou
mas não sei como
sem palavras
do feito recompensá-las.

cobro-lhes entretanto
esta viuvez em chamas
que sigo como doutrina
até deitar fogo aos teus olhos
na memória reflectidos.
e o riso inseguro que espalho pelas mesas
basta-me desta vez,
enquanto não te espero no banco de jardim
e à entrada do auditório,
no cume da serra e à porta da igreja,
no canto do café e no rochedo da praia,
com os bolsos repletos de fios inúteis
embaraçados como quando por descuido
deixava cair as marionetas
antes de chegares
e as mãos felizes à chuva,
vazias de papéis.

nenhum bocado de mim é teu
a partir de agora
podes segurar-me a cabeça no eléctrico
quando largarmos a graça.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Quando éramos água

nos teus falsos vinte anos
perguntas ao coração ferido
se pode ser feliz para o resto da vida.
sem saberes o tamanho do que te resta,
escondes-lhes a inquietação com que adivinhas a noite
e a firmeza com que fechas os olhos
quando me vês passar.

podias ter tido tudo
quando éramos água e eu tinha fome de humanidade
e tu tinhas um esboço de sorriso
para me dar depois do amor.

mas não quiseste,
para que pudesses
ser tudo,
em encantado despojamento.

a posse é erro, dizias.
e eu surda dizia, abraça-me para lá da pele.

depois o ardor da memória fulminou-nos:
o teu nome encolheu na palma da minha mão
e eu caí para dentro do teu esquecimento.

agora que somos de pedra no correr do tempo,
és o que tens
e a cor do cabelo.

eu descanso.