terça-feira, 25 de março de 2008

Fora do tempo

respondo ao negro da noite do mundo com um manto de luz tricotado com os fios da tua pele.
e nas minhas mãos, sem como nem porquê, renova-se o calor.
como vês, há lume neste magma incolor que cobre a minha humana interioridade, matéria de vida que há-de pulsar até apodrecer e se tornar densamente imaterial.
caio. e da queda faço um passo de dança.
para aterrar nos teus braços.
tremo. e do frémito retiro um gesto de amor.
para agitar o teu corpo.
suspiro. e da interjeição crio um mapa de desejo.
para me conduzir ao teu âmago.
e então todo o meu ser se acende e se inunda de ti.
um entusiasmo infantil impele-me a trepar às árvores para morder maçãs. e a pular entre ramos como num trapézio, sem rede nem medo.
e a escorregar pela verdura, subitamente criança de novo
e fora do tempo a rebolar na relva, no riso e na esperança.
renasço, digo.
continuas-me, dizes tu.
e eu enlaço-te com o teu nome preso à garganta. e derreto contigo em fragmentos líquidos, tão imensa como o universo. cintilando nas tuas unhas, no teu dorso, nos teus joelhos. em mil pedaços afluindo ao teu sangue e aos teus poros. respirando pureza pela primeira vez. em cada recanto teu, em cada terminação nervosa, em cada articulação, em cada um dos teus ossos, cartilagens, células, sinapses e filamentos.
melhor espalhada todas as manhãs.
e maior.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Razão nenhuma

as cicatrizes que me vestem carregam o tempo em que não existias, o tempo das asas de dinossauro nas noites suplicantes e dos fantasmas vulneráveis nas casas vazias, onde me fiz e refiz em fibra de vidro e monumentos de papel até reparar que a juventude é um pássaro a jacto.
poro a poro, em permanente desgaste e total consciência me construí. e espero avançar na obra, com a tua ajuda e mais uma ou outra frivolidade, sem ter de armazenar o espanto que a cada manhã o mundo me provoca.
resumo-me ao tacto quando te aperto a mão.
mas sinto que nessa acção simples se espalmam todos os meus gestos, os que parecem heróicos e os que exalam cobardia, os que merecem um sorriso e os que deviam morrer.
e absorvo-te o rosto e a medida certa dos sonhos, quase todos tão incertos como uma nortada de setembro, uma cascata de beijos ou um trilho pedestre numa montanha em lenta mas imparável mutação.
só então percebo que temes o que desejas porque sabes o que não queres. e consideras apaziguar-me com uma revolução de pureza que cale a minha prudente impudência e resolva a contradição em carne e osso e cabelos que sou.
a vida ocupa-te demais, dizes.
o meu corpo fala por mim, digo eu.
e encolho-me entre palavras perdidas, aos pés da cama. caminho sem me mover e danço dentro do que penso, procurando mais um golpe de sofrimento que me inspire um verso.
sei que não conheço a moderação, que em mim até a ternura é voraz, que em mim o gelo arde e os arbustos crescem e crescem até se tornarem sequóias. que em mim as manifestações divinas se desvalorizam na matéria da poesia e as gotas de suor formam sulcos na pele, abrindo-se em cursos de água de múltiplas direcções, sem nascente nem foz.
mas sei também que este amor é um glorioso templo, uma tarde de morangos crocantes, uma dentada no calendário, um desenho a carvão, com abraços recortados na luz, oníricos e amantes de si mesmos.
e razão nenhuma. só inefáveis altares onde ajoelhar.

quinta-feira, 6 de março de 2008

As ondas

vejo duas ondas breves nos teus olhos, enroladas nesse remoinho bucólico, todo outonal, que de matizes quentes os pinta. vejo-as embrulhar-se em si mesmas e bater nesse branco de espuma raiado de sangue onde a cor se deita. e vejo-as recolher-se a um recanto de águas nupciais, onde todos os elementos finalmente se reúnem e dançam valsas de pés nus.
e o que vejo fala comigo em graça subtil, como o cheiro a chuva e a maresia no cabelo.
irmãs do pranto e da alegria, gota a gota, as ondas inundam céu e terra e escondem-se no mar. lambem os alvos areais e as pedras negras com a mesma desenvoltura. são cadência e surpresa, vertigem e silêncio, verde esmeralda, azul índigo, turquesa, cobalto, transparência.
ansiosas vêm e em saudade partem. como gente.
chegam novas para se esfumarem cansadas, quase adultas. mas volvem sempre, retornadas meninas, além de imensas.
lentas e rápidas e sempre sublimes. como o amor.
e entornam-se na paisagem. e beijam-me difusas. e varrem-me o corpo, brilhantes mas tão etéreas como correntes de ar atravessando abismos.
e trazem-me o teu âmago de algas em flor, a iluminar-se e a escurecer ao ritmo da minha respiração. a molhar-me a fronte e o riso. a abrir-me para o dia.
desagua no meu pulso, digo.
enxuga a minha praia, dizes tu.
e então oferecemo-nos ao oceano, trocamos de pele e flutuamos.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Construção

moro nas palavras que te invento, num edifício de paredes finas como a pele e janelas enfileiradas, viradas umas para as outras e para dentro, por onde passam vapores emaranhados, quase alcoólicos, desprovidos de gente e pardos como o mundo nas horas do crepúsculo.
há uma porta por onde ninguém sai.
e por onde tu entras em muda nudez resplandecente,
como sabes que gosto de te ter.
sob o alto pé direito da entrada, bebes leite azul mungido ao céu das tardes primaveris, encostada ao papel de parede estampado, caligrafia de desenhos morenos que em mim se tornam versos líquidos, capazes de circular na pressa das minhas veias, artérias e demais vias verbais.
mostra-me a eternidade, dizes.
aqui é a região do instante fugaz, digo eu.
e prossigo a minha construção literária, pé ante pé em tijolo miúdo de tinta e sal, nas linhas brandas da palma da mão de deus.
e mantenho-me a caminho da plenitude sem sair deste lugar de festa e reclusão, procurando a comunhão com todas as coisas num entendimento gémeo da esperança.
e continuo a deitar-me no efémero colchão desta poesia que se escreve a si mesma através dos meus dedos em chamas.

sempre é um agora repetido em termos infinitos.
espalhados na noite, como estrelas.