quinta-feira, 31 de maio de 2007

O enigma

esculpias raparigas frescas em polpa de terra molhada e tecias sombras fantasmagóricas na colcha tricotada à mão. não desertavas. mas também não vivias. realizavas a tua obra, bebias catedrais nas férias, visitavas ribanceiras ao sábado à noite e era tudo.
eu vinha de dentro de um silêncio cheio de gente que me apedrejava. no interior obscuro dos meus poemas tinha havido sempre enigmas indecifráveis, que amedrontavam os homens e os seus cães. devorava lâminas e escrevia a sangue, directamente dos pulsos cortados.
encontrei-te no alto de um penhasco trepidante de decibéis, entre luzes e lantejoulas e corpos dementes. sussurrei-te dois versos baixos, quase ao nível do chão, que inexplicavelmente abriram as asas e subiram lentamente pelas tuas pernas, tocaram ao de leve as dobras dos teus joelhos e continuaram a voar intrépidos até se aninharem no teu colo.
conduziste-me pela mão até às tuas raparigas e deitaste-me entre os teus fantasmas. com eles sorri de lábios queimados e renunciei ao silêncio num desespero excessivo, tão alto como as tuas ribanceiras. delgado e pronto a vergar-se como um junco.
passei a morar a bordo de uma catedral em eterna peregrinação, onde saciavas a sede entre canções difusas, nos dias de trabalho e nos outros.
na madrugada do sismo, estilhaçaram-se os vitrais, ruiu a catedral e as tuas raparigas partiram, de braço dado com as sombras. choraste pela primeira vez.
e eu disse:
podia ter-te amado com outras palavras.
e tu disseste: o teu amor é um país fechado.
hoje o horizonte é tudo o que me resta.
no relógio do meu coração são sempre cinco da manhã.
só tu sabes porquê.

terça-feira, 29 de maio de 2007

As rosas

arrancaste os espinhos às rosas, um a um, com a cautela de quem atravessa uma estrada, e misturaste-os com as beatas no cinzeiro de alabastro. enfiaste os caules nus na lata dos pincéis gastos e na taça de vidro arco-íris juntaste algumas pétalas à acelga e aos agriões, que temperaste com o vinagrete do dia anterior, esperando que eu comesse.
das restantes pétalas fizeste uma grinalda para enfeitares os cabelos. depois, pegaste no casaco, esbofeteaste-me com uma folha verde-desdém em forma de gargalhada e saíste de casa.
fiquei à tua espera durante muito tempo, a alinhavar palavras em agendas antigas, até chegar ao osso das sílabas e ao ciciar dos pontos finais.
consegui resistir aos sulcos das balas na cabeça, ao vinco do cinto de cabedal no pescoço, ao choque da torradeira no banho de imersão, aos golpes nos pulsos cortados lentamente, ao estrondo da queda vertiginosa do sexto andar, à digestão da caixa de comprimidos, à incisão da faca na barriga.
e tornei-me cúmplice das longínquas videiras em socalco, derramando vinho na língua enquanto espetava alfinetes no teu retrato e te chorava eternamente noutros braços, nos braços dos meus imprestáveis solilóquios, tecidos noite a noite pelas aranhas já conformadas do meu cérebro.
mas naquela manhã de ofuscante luminosidade, em que tinha acabado de esfregar os tapetes e de arrumar de vez o teu material de pintura e as janelas se abriam ao vento como há muito não acontecia, ouvi a fechadura da porta e senti o aroma das rosas a invadir a casa num lance.
penduraste a grinalda por cima do casaco no cabide do bengaleiro arte nova e cuspiste-me um pássaro de mel sorridente.
disseste: nunca mereci o teu amor.
e eu disse: o vento escreve o teu destino no curso dos rios.
então ofereceste-me a tua boca e o meu coração encheu-se novamente de pólvora e de flores e de gestos de mar.

segunda-feira, 28 de maio de 2007

O divã

a ternura pingava-te dos dedos e os meus olhos paravam no astro essencial da noite.
o presságio gelado da manhã ainda me amargava a saliva, mas tinha os nervos e os ossos em paz. já não sentia os dentes da saudade a roê-los.
lembrei-me dos meus recorrentes sonhos contigo dentro e medi toda a amplitude da inutilidade deles naquele instante em que ali estavas, cintilante na tua nudez quente como um truque de ilusionismo.
sou um coração feliz, disse.
sou um corpo fragmentado, disseste.
como sempre, mentias menos do que eu.
demorei-me um par de minutos à roda da tua cintura, por magia espiralada.
e só voltei a falar quando retornei à minha forma habitual.
disse: és um oráculo de pele muda.
tu embrulhaste-me os ombros com as pernas e aquele divã de couro estalado tornou-se o lugar perpétuo do meu prazer.

domingo, 27 de maio de 2007

O cofre

abri o cofre dos acasos e entornei-os por cima da cama, vasculhando-os até pegar naquele instante em que soltaste um como está? quase indiferente. virei-o e e revirei-o, raspando-lhe as escamas e o halo negro que o mantinham vivo, há anos em clausura, dividindo o exíguo espaço do cofre com todos os outros acasos. os meus, os nossos e os do afinador de pianos que nos regava as rosas nas férias e me confiara, há meio século e um dia, os seus.
olhaste-me com olhos de incrédulo verde enquanto eu ensaiava palavras na minha cabeça, procurando-lhes uma musicalidade há muita perdida.
não dizia nada há 32 horas. sentia o tempo íngreme a dar saltos para a frente e para trás, fazendo tremer o guindaste que prendia a minha alma ao éter desde aquela já remota manhã de outono em que o granito, pedra a pedra como um túmulo no meu âmago, se tornou uma espada de água. a manhã da tua chegada.
tornei a arrumar os restantes acasos e fiquei a ver esse instante morrer. demorou pouco, pelo menos não o suficiente para que os teus olhos mudassem de cor.
entreguei-te o cadáver e tu beijaste-o, engolindo o espaço ao seu redor. e no extremo do meu braço nasceu então uma mão nova, pela qual falei.
disse: os ecos do amor extinto ainda queimam a liberdade.
nessa noite o teu corpo tornou-se uma árvore selvagem no meu mundo intratável.

sábado, 26 de maio de 2007

Ao volante

a cidade acendia-se, janela a janela, e o teu olhar estremecia como estremeciam as folhas do outono às rodas do carro. o asfalto debitava a sua música de cordas deslizantes e o imenso cartaz da musa dos ombros lisos chamava-te e iluminava a esquina que haverias de dobrar com o início das chuvas.
tinhas saudades do vinho a correr nos tristes rios da tua loucura e balbuciavas cânticos de louvor à caligrafia do desejo. eras o mais prodigioso mistério do mundo ocidental e eu abrigava o teu coração em dádiva perene.
estacionei e conduzi-te pela mão à minha mansão de papel, onde desfolhámos flores carnais e trabalhámos as horas da poesia num alvoroço de ardores e feridas.
disseste: não vás.
e eu disse: sou um rochedo.
no território maldito da paixão, indiferentes à ameaça das águas, fomos trepadeiras imparáveis em direcção ao céu. e quando aprendemos a saborear o ritmo lento dos dias, o tempo tolheu-nos e acabou por nos esmagar.
então a cidade desvaneceu-se, janela a janela. e começou a chover.
eu depus as horas e as flores e parti para o deserto, onde moro ainda, com um fado atravessado na espinha e a voz descarnada, ao volante.
olho através do vidro e falo contigo através da brancura das cálidas dunas.
digo-te, em surdina: sei que tu, que um dia foste o meu destino, havias de amar estas escarpas de rendas e estes venenos em fio que vejo do alto da minha solidão muda.
evoco a cidade por um segundo. vejo-te a caminhar em serena fusão com a calçada, até desapareceres no cotovelo das duas ruas que mais pisámos. e depois adormeço.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

A luz

quando a luz se apagou, ficou um aviso a pulsar na tua pele, encapsulado nos poros vibrantes das tuas costas arqueadas. um pingo de energia voluteava entre um poro e outro, majestoso na cadência dançante dos seus saltos, o teu corpo tornado soalho de salão de baile, espalhado num grito flutuante e meu.
era quase possível beber o teu ritmo, estugar-lhe o passo líquido para prendê-lo na língua.
disseste: cuidado, as minhas cores viajam no escuro.
e eu disse: fecha-te.
tu abriste os olhos para a noite, recolheste os tambores e começaste a arder. eu puxei-te para o colo e enfiei-te no dedo, anel de música orgulhoso num repente imóvel.
e o dia nasceu no quarto.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Nostalgia

fixaste o sorriso na minha boca e apressaste o passo na minha direcção. nem uma hesitação bulia no teu rosto. nenhuma gota de remorso atravessava os teus olhos. a saudade zurzia canções de mar nos teus ouvidos. pensaste em despir o casaco mas deixaste-o ficar, pendendo imóvel como um telhado inútil numa casa abandonada.
fechei o livro e não te abracei. abri a garrafa molhada do gelo que a protegia do calor de agosto e apontei-te a reles cadeira de plástico verde do terraço, recordando no meu íntimo os dias em que te comparava a todas as coisas belas do mundo enquanto tu pestanejavas e baixavas a cabeça, com os dedos enrolados no cós da camisola e os sons da cidade rodopiando aos teus pés.
conversámos e comemos. conversámos e bebemos. e conversámos. até começar a arrefecer e o horizonte engolir o sol. falaste-me dos países onde moraste, das mulheres com quem dormiste, das partidas e chegadas que te enrugaram, dos projectos que não terminaste, dos sonhos que perdeste, dos amigos que viste morrer, da interminável sucessão dos teus desgostos.
eu contei-te as minhas viagens interiores, muito brevemente, para não te aborrecer. e, de tão apegada à minha solitária nostalgia, não percebi que naquela tarde voltavas.
e tornaste a partir.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Um meio

num meio-dia de um meio-outono invulgarmente solarengo, quis lamber-te o açúcar das pálpebras e saber a cor dos teus ossos riscados de noite. atingi o âmago da tua solidão e um grito do meu sangue pegou-te ao colo e levou-te amor aos tímpanos, tropeçando duas vezes no vagabundo que dormia à soleira da porta que dava para essa cidade imensa que era o teu coração.
vagueámos muito tempo entre as sombras, ouvindo janelas abruptas de vento a bater nos caixilhos, sob tectos preguiçosos, sem astros a rodopiar neles nem luares pintados. o teu nome ajustou-se à minha boca e a tua nuca tornou-se um declive de sal por onde deslizei num silêncio tagarela, afiando lentamente a lâmina do meu desejo.
no velho crepúsculo que tacteava o meu riso, cresceram então mãos para te povoar e braços que te prenderam e pernas voláteis como cárceres de luz. ficaste um instante, até o meio-outono se converter em inverno e o tempo estrangular o sol.
depois, quiseste soltar-te, eras demais do mundo para te fingires eternamente minha e em dias repetidos exemplar. os meus órgãos todos, chocando uns contra os outros, debateram-se no vapor ácido que flutuava no interior do meu corpo. franziu-se-me a pele do rosto, regressei ao vácuo sem fôlego das minhas anónimas insónias e numa madrugada de arquitectura pornográfica, recomecei a cair.

terça-feira, 22 de maio de 2007

O espectro

chorei pelo espaço inocupado do meu ser com a pele colada à tua, na treva adocicada do teu quarto de persianas corridas. a consciência enlutava-se-me e o meu espírito despido era uma espécie de cegueira, disputando a inocência com a brancura das paredes e as gargalhadas da tua árida melancolia.
disseste: era de supor que a mão que te acariciava pudesse agredir-te um dia.
e eu disse: às vezes a roupa dói-me tanto como a nudez.
tirei o sorriso que guardava, suspenso na lembrança de uma manhã feliz, e meti-o por baixo das unhas, que cravei nas tuas costas. de súbito, ganhaste o tamanho do mundo e começaste a dançar. eu enxuguei as lágrimas, descolei-me de ti e tornei-me um espectro discreto, para sempre imerso na mais efémera das tuas memórias.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

O princípio

trazias nos olhos uma solução para a realidade, nas mãos todos os sentidos aglomerados e uma pista para a fantasia na costura das calças descaídas.
contemplei o teu rosto de perfil, demoradamente mas sem notar o precipício que nele começava, abrindo-se no ar abstracto à tua volta, até terminar no teu sexo.
três segundos bastaram para revestires de azul a mais funda cicatriz da minha memória, para recurvares o céu e extinguires a minha sede tão antiga como o muro da estação.
o amor falava através da tua pele, como se fosse novo, por estrear. desenhava um incêndio nas minhas lágrimas e tomava o espaço em falta do meu ser. então rasguei a carne e deixei-te entrar.