quarta-feira, 23 de maio de 2007

Um meio

num meio-dia de um meio-outono invulgarmente solarengo, quis lamber-te o açúcar das pálpebras e saber a cor dos teus ossos riscados de noite. atingi o âmago da tua solidão e um grito do meu sangue pegou-te ao colo e levou-te amor aos tímpanos, tropeçando duas vezes no vagabundo que dormia à soleira da porta que dava para essa cidade imensa que era o teu coração.
vagueámos muito tempo entre as sombras, ouvindo janelas abruptas de vento a bater nos caixilhos, sob tectos preguiçosos, sem astros a rodopiar neles nem luares pintados. o teu nome ajustou-se à minha boca e a tua nuca tornou-se um declive de sal por onde deslizei num silêncio tagarela, afiando lentamente a lâmina do meu desejo.
no velho crepúsculo que tacteava o meu riso, cresceram então mãos para te povoar e braços que te prenderam e pernas voláteis como cárceres de luz. ficaste um instante, até o meio-outono se converter em inverno e o tempo estrangular o sol.
depois, quiseste soltar-te, eras demais do mundo para te fingires eternamente minha e em dias repetidos exemplar. os meus órgãos todos, chocando uns contra os outros, debateram-se no vapor ácido que flutuava no interior do meu corpo. franziu-se-me a pele do rosto, regressei ao vácuo sem fôlego das minhas anónimas insónias e numa madrugada de arquitectura pornográfica, recomecei a cair.

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