sábado, 26 de maio de 2007

Ao volante

a cidade acendia-se, janela a janela, e o teu olhar estremecia como estremeciam as folhas do outono às rodas do carro. o asfalto debitava a sua música de cordas deslizantes e o imenso cartaz da musa dos ombros lisos chamava-te e iluminava a esquina que haverias de dobrar com o início das chuvas.
tinhas saudades do vinho a correr nos tristes rios da tua loucura e balbuciavas cânticos de louvor à caligrafia do desejo. eras o mais prodigioso mistério do mundo ocidental e eu abrigava o teu coração em dádiva perene.
estacionei e conduzi-te pela mão à minha mansão de papel, onde desfolhámos flores carnais e trabalhámos as horas da poesia num alvoroço de ardores e feridas.
disseste: não vás.
e eu disse: sou um rochedo.
no território maldito da paixão, indiferentes à ameaça das águas, fomos trepadeiras imparáveis em direcção ao céu. e quando aprendemos a saborear o ritmo lento dos dias, o tempo tolheu-nos e acabou por nos esmagar.
então a cidade desvaneceu-se, janela a janela. e começou a chover.
eu depus as horas e as flores e parti para o deserto, onde moro ainda, com um fado atravessado na espinha e a voz descarnada, ao volante.
olho através do vidro e falo contigo através da brancura das cálidas dunas.
digo-te, em surdina: sei que tu, que um dia foste o meu destino, havias de amar estas escarpas de rendas e estes venenos em fio que vejo do alto da minha solidão muda.
evoco a cidade por um segundo. vejo-te a caminhar em serena fusão com a calçada, até desapareceres no cotovelo das duas ruas que mais pisámos. e depois adormeço.

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