segunda-feira, 28 de abril de 2008

Espelho

arrumo um novelo de beijos na primeira gaveta da cómoda e ligo o espelho da nostalgia.
no reflexo vejo a luz da juventude apagar-se e as cores da vida a vibrar como as cordas da guitarra que em tempos tocámos, madrugada dentro na praia dos segredos, viradas para o lume acidental que à noite ateávamos, entre o primeiro king e o último whisky dançante.
de almas incertas junto à fogueira, lembro-me, nunca os nossos corações se queimaram como depois aconteceu, quando a lua parou de sorrir no meu sorriso e as ondas deixaram de fervilhar nos teus olhos.
de rostos batidos pela nortada, mãos acesas e pés sujos de alcatrão, éramos tão lisas e pueris como as nossas peles selvagens, macilentas como convinha, não andássemos nós a devorar os tormentos de crescer sem aceitar a vacuidade dos sonhos.
e era para os sonhos que então vivíamos.
as minhas fantasias, recordo, eram tão sólidas como as rochas rasteiras do lajedo e o meu desconhecimento do mundo proporcional à minha sede. viajava no teu corpo e amava-te em inquieta angústia, como se soubesse desde sempre que jamais poderias ser o que em ti projectava.
e tu eras a face do desejo sem o desejares, a sonhar com profiteroles, abstracções expressionistas e sapatinhos de lã.
um dia disseste: não sou tua, pertenço à ilha.
e eu disse: sou um náufrago à deriva.
então compreendemos para onde íamos e abrimo-nos ao real, de espíritos tombados sobre a areia branca, misturados no declive das dunas e no uivo dos cactos.
e avançámos paralelas pela beira-mar.
no espelho da nostalgia reparo numa ruga funda que me inclina a boca para o centro da terra. lateja o teu nome, mas já não me incomoda.
abraço-me lentamente e desligo o espelho.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Pensamento II

quando o amor tropeça é o nosso coração que cai.
quando o amor tropeça não podemos voltar-lhe as costas.
quando o amor tropeça numa pedra do real
devemos ajudá-lo a reerguer-se com as mãos do sonho.
e pregá-lo ao peito.
e exibi-lo com sorrisos nos olhos pelos dias dentro.
como se nunca tivesse tropeçado.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Avanço

por ti correm os rios, em ti crescem as matas, para ti cantam os pássaros. toda tu és natureza em voluptuosa vibração, o veludo de pétalas das flores, a seda nevrálgica das folhas, as escamas prateadas dos peixes, a frescura marítima da tarde, o brilho solar que incandesce as manhãs, as estrelas penduradas no céu nocturno, os flutuantes frutos nas copas das árvores.
e enches de graça o meu mundo. dás-me a razão do riso e o lenço de apagar lágrimas. ofereces-me colheres de chocolate e o sal que me tempera cada momento. amplias-me as cores e as formas da alegria e mostras-me os rebuçados que um dia guardaste sob a pele, tal como a terra guarda as raízes sob a sua crosta e o mar guarda segredos nas suas canções de água, transparentes e inefáveis e líquidas e puramente instrumentais.
contigo avanço como se soubesse para onde me dirijo.
não sigo correntes, declino amarras, nego marés. e vou decidida, de leme em punho e punhal à cintura por precaução, como se conseguisse vislumbrar a meta à minha frente, como se pudesse antever o destino de linhas curvas, como as guitarras e as mulheres e os barcos, que há-de ser o meu futuro.
mas em verdade te digo que o desconheço.
como adivinhá-lo se nenhum horizonte é permanente? como sabê-lo se tudo o que vive também morre? como antecipá-lo se nada se queda ou cala na irremediável progressão das horas? como imaginá-lo, enfim, se a realidade está colada ao tempo que passa e fora do tempo não passa de sonho?
mas avanço convictamente.
contigo e sem mapa, contigo e atenta. abraçada ao teu corpo, volúvel como todo o ser, mutável como o universo.
mas mais meu.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Certeza

há verdura neste caminho.
por mais que o negues, por mais que vejas o asfalto avançar sob a curva dos teus pés e a cinza erguer-se no ar que te envolve, posso assegurar-te que este chão continua fértil.
olha a cascata, como sempre majestosa, na sua cadência de montanha. olha o rio, para sempre navegável, no sossego da sua própria corrente. olha a árvore, imponente como nunca, no seu imparável progresso rumo ao céu. olha a folhagem, cada vez mais luxuriante, nas margens de tudo o que rola, como ainda ontem rolaram os meus olhos sobre o teu corpo, até se quedarem embriagados no diâmetro do teu pulso.
olha. e em lúcida consciência diz-me o que vês para além desse negrume que te abraça. espreita através da bruma e enfrenta os fantasmas, rasga a escuridão e esmurra o medo.
do outro lado da noite estarei eu, à espera da tua história. fecunda como o caminho, estóica no fim de todos os trilhos que te parecem terminar no vazio.
poderei finalmente escutar-te e fundir a vida que te respira pelos poros com a verdura perene do mundo. num abraço solarengo, com dentes de sorrir e mãos de colar.

a aridez reside apenas no teu coração. quase consigo ouvi-lo, enfermo na febre de sonhar-se em pleno e irrigado de luz.
sei que ainda há esperança para ele.
não o deixes morrer.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Desarmonia

no tempo em que coleccionava harmonias, havia folhas de hera a encaracolar-se no alvo edifício que era o teu corpo.
num sopro litoral aceleravas, como a canção do zorba.
dançavas aos pulos, a galope no charme, de echarpe lunar encaixada entre os ombros.
e atiravas copos à fogueira em nome dos prazeres da noite, com beijos calados na língua, sem língua que falar.
eu coleccionava harmonias.
trancava-as em sorrisos ordeiros, comprimidas sob compassos binários e estéreis ilusões estéticas.
nada de notas dissonantes, nada de sons imprevistos.
refrões demais. e nenhuma redenção.
até que te imobilizaste, sem intenção definida senão o caminho que a mim levaria.
e desarmaste as minhas épicas harmonias.
desarrumaste a colecção que há dezenas de anos eu ordenava.
e ofereceste-me ao caos, ao colorido caos teu a que hoje pertenço, sempre em trânsito como o universo.
a vida é uma eternidade descontínua, disseste.
e moldaste a minha nova casa a fibra e magma, em linhas curvas e traços navegantes. pintaste-a de suspiros quentes, em tintas metamórficas com a espessura do desejo. decoraste-a com estilhaços de música e acordes marítimos, numa arquitectura tão simples como as árvores, com alicerces de chocolate e a textura dos sonhos.
eu entrei nela vestida de nada, como se entrasse num círculo mágico de anões gigantes e plumas trágicas, destinada ao êxtase de um aplauso interior.
e disse: não há trapézios seguros.
só então voei. envolta no teu abraço e sem sair da marquise. transparente como os vidros que a enformavam.
firme como as suas vigas. plena como o espaço dentro.
e indefesa.
mas finalmente preparada para cair.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Súplica

arranca-me os olhos para que possa descansar.
só esta noite. e por um instante tão breve como uma amiba.
não sei se resistirei muito tempo sem eles.
mas preciso que os subtraias ao meu rosto e os laves. à torneira, mergulhados no guarda-jóias de limoges ou na concha das tuas mãos sob a chuva. fica ao teu critério. mas não posso esperar nem mais uma hora.
peço-te, em exausta prostração.
se consegues ouvir-me, escova-lhes toda a lava e horror,
retira-lhes o medo, a morte, a dureza mineral.
e deixa ficar apenas o que vive.
as flores. o galope dos corações. o brilho celeste.
e o barulho do mar.