terça-feira, 31 de julho de 2007

O búzio

a conta-gotas subtraio água ao mar e despejo-a nos olhos, esféricas vasilhas onde guardo os desejos, molhados como mergulhos.
remendo o coração com outras vísceras e, a linhas de sangue, prego-lhe um botão de antártida, sólido como em tempos o ritmo da tua respiração no meu pulso.
às vezes os teus gritos caem nas minhas janelas, arranham a madeira dos caixilhos, desabam nos parapeitos, escorrem pelos vidros, imitam os círculos de voo das rolas em redor da casa.
e desviam-me por breves instantes do meu mundo sem época, nublado de gestos diluídos pelas artérias de espuma do tempo.
há carne e osso nas minhas lágrimas, digo.
e tu gritas na tua mordaça, quase em paz.
então vejo o rosto da terra onde te amei abrir-se num sorriso ébrio. e desenho um ponto final na tua luz, com as batidas do timbaland a ressoar nas paredes que dividem os corredores da minha memória em quartos contíguos, como enfermarias sobrelotadas.
assim me desvinculo de ti, estrangulada às mãos deste gelo que agora se multiplica nas vagas do oceano indeciso onde a minha fraqueza sobrevém.
e o búzio mudo revela-se enfim entre as minhas pernas.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Encontro

fomos amantes capazes de voar até sermos amantes a afundar-se, como ilhas de um império decadente, na brancura do colchão.
e então passámos a deslizar de corpo em corpo sem um arranhão na alma, como se acreditássemos na possibilidade de renovar, uma e outra vez, a única sintonia que conhecemos. como se assim celebrássemos esse amor único, todo nosso e secreto e muito antigo, que jamais esquecemos.
este é o passado que temos. já não precisamos dele. por isso empurramo-lo para abismos sensuais e poços de vazio.
mas ele permanece. nítido como nenhum presente, dizível como nenhum futuro.
e nunca passa. apaga-se em certas noites quentes.
mas acende-se de novo quando o sol se levanta e o inverno nos arrefece nas mãos.
ontem esbarrei em ti no intervalo do teatro.
levava a minha última lágrima presa ao fio do pescoço, tu vestias a personalidade germânica das terças e tinhas um saco de canetas ao ombro. olhaste-me com a doçura de um licor de ameixa, eu hesitei entre um sorriso ausente e um gesto de espuma de sabão.
já não cantas, perguntaste.
e eu disse: preciso dos teus ouvidos.
tu abraçaste-me naturalmente antes de regressares à plateia.
eu ofereci-te uma melodia breve com mil dedos dentro e cheiro a pólvora seca.
e um formigueiro de duendes ficou a vibrar no foyer.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

A oficina

avançavas apressadamente para lugar nenhum e eu arranquei-te a desolação da alma e a droga dos bolsos das calças.
num instante de brilhante demência, cosi asas aos teus ombros, colei desejos túrgidos ao teu cérebro e tatuei botas de couro nos teus pés.
tu caminhaste para mim com um gesto de fuga a serpentear-te nos braços e um sorriso quase heróico no rosto.
confio-te os meus dias, disseste.
e eu disse: limpo o pó às tuas noites.
puxei as persianas das janelas, cobri a tua fome com papel de parede às riscas, acendi o pavio do teu coração desconexo com versos de lume esculturais.
e conduzi-te à minha oficina para te refazer.
hoje vou vender-te em leilão. já vales tanto como um matisse.

sábado, 21 de julho de 2007

Sem virtude

não há virtude no que vejo neste quarto flutuante com chão de mar. o teu cabelo encaracola-se nas minhas coxas e a tua boca entreaberta polui a brancura dos meus lençóis. tenho os pulsos em tensão.
vens de seda com a espessura da pele e um lenço inquieto de pirilampos rodeia-te o pescoço. sobes com um passo ao sacrossanto altar de veludo vermelho e saltas a compasso binário de dildo fluorescente na mão direita, enluvada de preto como a esquerda até aos cotovelos.
serves-te dele como de um microfone e, não sei como, amplifica-te a voz para lá do cemitério de livros da casa. cantas que me matas, toda glam rock e possessão, obscena de olhos vítreos e rosto afogueado.
eu baixo a cabeça de vez em quando, como se esperasse encontrar caranguejos entre os rochedos do quarto. mas só alcanço a penumbra do silêncio. a luz está onde tu estás e é tão incandescente que derrama noite em todos os objectos em redor, sob e sobre o teu corpo.
levanto-me do mar e enfrento-te um instante maior do que um orgasmo, acreditando que podes ouvir a música do meu sorriso manchado de desejo.
mas não podes. a tua verdade é a absoluta exaustão raiada de medo e raiva.
mato-te, cantas ainda.
e eu murmuro: nada é mais fácil,
entre guitarras demoníacas e a ensurdecedora brisa do meu âmago litoral. quero sair dele em chaga.
na dor que me infligires, atingirei a pureza.

domingo, 15 de julho de 2007

A casa

há barcos de perfume a viajar-me nos corredores dos ossos.
sinto-os ancorar nas ilhas assoalhadas do esqueleto e depois partir de novo, para vaguear sem norte na solidez branca que me sustenta.
eles são o meu balanço e a minha inquietação, um clamor de sinos, uma festa de mar. alongam-se nos fémures, encolhem-se nos carpos. adaptam-se, tal como os olhos ao sol e a língua ao sal e o coração à dádiva.
por vezes saem-me aromas navais pelas unhas e crescem-me velas nos dentes e mastros nos tornozelos. mergulho numa reza inconsciente, boiando num fundíssimo poço de memórias, com sofás de morango e malas de vinho e sorrisos de açúcar.
então, entre salas e quartos de palpável maresia, procuro-te num vagar de morte, amarelo como os eléctricos de lisboa e os táxis de nova iorque.
e encontro-te entre flores de seda e picaretas em derrocada, indiferente às vagas de azulejos da cozinha, com um queixume breve na boca.
perco-me no sangue arfante, digo.
e tu dizes: não caibo no que vives.
referes-te à minha casa, arquitectada pelos traços hipnóticos dos meus pastéis de óleo, num limbo entre a ficção e o real.
a casa onde engulo libélulas ao pequeno-almoço para acalmar as ondas dos ossos e onde, à noite, cuspo morcegos na almofada. a casa onde me nascem filhos das plantas dos pés e plantas dentro da cabeça. e onde cada lâmpada é uma mulher e cada armário uma prisão de fragrâncias.
a casa que sangra. onde te encontro e te deixo.
a horas nada convencionais.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Âmbar

de peito em lava, monto uma pirâmide alada e vou cumprimentar as estrelas. faço corridas com os cometas e celebro a tua música curvada sobre o meu umbigo enquanto apago o teu rosto desta galáxia.
foste o meu fôlego, a minha guerra, a eternidade imóvel do meu abraço. e tornaste-te uma pequeníssima poeira na voracidade enxuta dos meus olhos.
hoje declino o teu desvelo, nego a tua mão. não quero que me salves dos dragões cuspidores de fogo que trago no âmago.
prefiro arder com os meus murmúrios neste longo sono envenenado de pranto.
o amor morre na sede, digo.
bebe-me, dizes tu.
e eu humedeço os lábios com a língua e pigarreio uma vez. depois telefono para casa e entorno-te no tapete, muito lentamente, até te misturar por completo com o entrançado têxtil da decoração. como se voltasse a desenrolar o teu corpo de búzio, colorido e gasto, sobre o âmbar da terra.

domingo, 8 de julho de 2007

Sossego

despi-me das metáforas, livrei-me das roupas, depus-me diante de ti sem nada que me escondesse, com o meio-dia a queimar-me os ombros e a seiva da luxúria a dardejar-me nos olhos.
tu vieste num sonho vagaroso, vestida de urgência e bichos-de-conta, e tatuaste a tua vida, sílaba a sílaba, no meu braço.
e eu colhi um riso inocente da tua boca e uma correria incessante do teu corpo.
depois, a humidade do tempo agarrou-se-nos ao peito e afundámo-nos no incomensurável rio da inércia, sem sinais visíveis da passagem das horas. pouco havia a fazer para além de perseguir cães e ver os ponteiros do relógio de sala a girar ordeiros como um sistema solar. às vezes tingíamos os dedos de sangue e confundíamos as insónias. e tocávamo-nos a medo, em súbitos actos de valentia, com o desejo a desertar da pele e o frémito da fuga a florir no cérebro.
um dia rugiste no espelho.
e eu aperfeiçoei-me na arte de te substituir pelo orvalho da melancolia.
o teu silêncio é uma vertigem, disse.
por isso me escreves, disseste tu.
hoje leio os dias à luz da tua ausência e aproximo-me do centro da noite com um fio de tinta a escorrer-me da alma.
com lâminas afiadas, assinalo os caminhos que me separam de ti. com cubos de gelo, decifro os vestígios dos segredos que me deixaste. e escuto a diluída espessura dos teus gemidos. e vejo o esplendor da tua fronte a interromper o monólogo do vento.
e amo-te num sossego de lago.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Milagre

vejo-te dormir entre os leões de pedra e na minha longa nostalgia falo com a noite sobre as coisas que não me cabem no coração depois de ti.
seguro uma pluma estrangeira e com ela te escrevo em idiomas longínquos pelos dias que virão, vazios como os de hoje e eternizados na cruel saudade de tudo o que foi e não pôde ser.
há um regresso a refulgir em surdina nas minhas têmporas. um regresso que nunca será. um regresso ao lume da sedução, com mares de cetim onde nadar e tumultuosos rios no fundo dos olhos. um regresso ao abismo vermelho do meu nome na tua boca, das chamas inquietas dos teus uivos na minha pele.
e o silêncio ergue-se do chão, numa cordilheira triste de notas desencontradas, que ponho ao pescoço, tremendo.
e nasce-me nas veias uma canção enrugada, definitiva como a morte.
ninguém tem culpa da própria solidão, digo.
e tu sonhas com hélices e valsas e crimes de paixão e véus sobre véus sobre véus. sem palavras, sem palácios de luz, sem fulgor para além do sangue tépido que te navega.
queria plantar uma árvore sublime no lugar onde dormes.
e acordar-te.
mas nesse asfalto estéril só um milagre poderá crescer.
e o meu último milagre foi ter-te amado sem te ter.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Letargia

a desilusão inaugurou-te a letargia. amortalhaste-te nela como se sentisses prazer na imobilidade, como se até o planeta tivesse parado para que melhor o olhasses, num instantâneo de verde e azul.
os fantasmas instalaram-se entre as tuas fotografias, adormeceram de rosto cansado nas tuas almofadas e beberam à vitória pelos teus lábios, sugando o amor do cálice que te estendi com inocência servil.
antes de te recolheres, segredaste-me que tinhas o coração espalhado pelo país dos pulsos rasgados e ainda enruborescias nas planícies do desejo. que eras de vidro e querias preservar-te dos estilhaços, evitar que o peso da vida te esmagasse.
e eu disse-te que te entendia e à tua renúncia a tudo o que não podes prever nem medir.
nem tentei dissuadir-te. limitei-me a ver-te desaparecer para dentro de uma curva apertada, informe e de voz sibilina, que te hipnotizou ao ponto da calepsia.
há mistérios que riem, disse eu.
mas tu tinhas as janelas do teu ser já viradas para dentro e sorriste apenas, muito levemente, em silêncio. como se dormisses desde sempre.
e eu parti em viagem, decidida a recolher cada um dos fragmentos de carne que devia estar a bater-te no peito.
desde então, tenho conhecido heróis e patifes, virgens e anjos, loucos e invisuais. tenho comido pássaros e rebolado no céu. e tenho visitado o teu refúgio de vez em quando, com as mãos em sangue, confiando que um dia devolverei a cor ao teu rosto.
mas às vezes só me apetece deitar-me ao teu lado a olhar o firmamento.

domingo, 1 de julho de 2007

O estaleiro

estou atenta ao borbulhar do tempo e choro lágrimas antigas a todo o comprimento dos dias, oscilando entre o fabrico absurdo da saudade e os actos excessivos da paixão.
descubro deuses na minha infância resumida a uma folha da memória e desenho metamorfoses orgulhosas no fio das palavras livres do passado, onde mal me equilibro, funâmbula e gasta. tanto tombo para norte como para sul e às vezes esbarro nos amplos vestidos de luz onde o teu corpo rodopia como a terra no cosmos.
quando me nasciam poemas dos dedos e tu me acenavas de luvas, as horas eram melhores, quase com a duração justa.
depois saí à rua para esperar por ti e vi-te resplandecer à chegada, de sorriso trémulo mas sem dúvidas nos olhos.
disseste: a apoteose mora no início de tudo.
e eu disse: a chuva da ilusão não molha.
tiraste as luvas, tocaste-me com prudente nobreza, soerguida de um rio de poeira, branca como o deserto, frágil como a pele, toda porcelana e oiro como o pôr-do-sol.
e partiste num assobio navegável.
eu já não encontrei o caminho de volta ao conforto lírico do meu canto. e agora tenho insónias. deito-me cedo para sonhar mais tempo contigo mas oiço-te respirar entre os lençóis e os plátanos e os fios de ovos festivos. e tilintar no escuro como um lustre ao vento. e cintilar nos abraços reclinados sobre a brevíssima unidade que a vida nos consentiu.
o meu coração é um estaleiro de andaimes vibráteis por onde sobem as moléculas operárias do amor, de baldes com entulho ardente às costas e pás de cimento meigo nas mãos, destinado a colar-nos e a reconstruir-nos pedra por pedra num edifício sem limites, onde poderemos ser pássaros aninhados sem pressa. nem vontade de voar.