terça-feira, 31 de agosto de 2010

Fracção

subo as escadas
desta noite de silhuetas recortadas.
não vejo rostos
nem mesmo o teu,
essa presença de cinza
com que desejei pintar os meus dias.
nem vejo horizonte.
só estes degraus contínuos e estes pés a vencê-los.

sei que é da natureza da carne desejar o grito e
do coração procurar o amor.
sei o rumo de alguns rios, um punhado de adivinhas,
como pode doer um abraço.
e sei ainda que cada manhã é única como um ser humano.

de resto
sou só silêncio.
e estes pés em ascensão.

mas às vezes páro e afago as asas
como se ainda as tivesse,
dizem que é comum nos amputados,
e então sorrio e
numa fracção de saudade recordo o teu rosto.
guia-me ao teu inverno, repito.
e tu tornas a dizer, só voo contigo.

eu pestanejo e recomeço a subir.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Abrigo

trago a tua voz tatuada nas asas.
nelas voo pelas tardes
e as tuas dores
latejam-me nos nervos
apertam-me os músculos
martelam-me os ossos
e em cansaço
e solidão se evolam
neste cigarro que arde lento
entre os meus dedos.

trago a tua voz tatuada nas asas.
oiço-a rir e acenar-me,
chorar nunca,
nem gritar,
porque à minha memória pertence
e eu prefiro-a feliz.

que assim seja a vida de hoje em diante.
enquanto trago nuvens
e bebo o sol
e engulo o vento,
a tua voz, tatuada nas minhas asas,
abrigando-me do tempo,
esse mistério silencioso
que não pára de renascer
mas só sabe fugir.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Esse teu olhar

esse teu olhar sempre em fuga,
que por instantes ao meu regressa
e logo se aparta numa cascata de medos,
guardo-o no peito.

escondido brilha
e fala-me do que não dizes
como se cantasse quando se fecha
e me pudesse sossegar
ou trazer-te ao meu desejo.

e em mim esculpe cores em nobres materiais
e afia-me as mãos para lhes apurar o traço
neste cosmos de papel que invento,

até que adormeço no teu esquivo abraço,
sereno no que sonho, e
encostada à humana doçura
do teu sorriso,
acredito que te terei.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Outro tu

vertes mudos espasmos nas encostas da luz
em rubra dádiva, não falas, cintilas.
não gemes, sorris.

o amor verte raios nas tuas costas,
volta a sorrir-te de longe,
convence-te metafísica e perene,
mente que não se esquece,
espírito apenas quase
e justa.

então sabes do sol e dos sentidos,
do teu corpo que faz doer um minuto
e não marca nódoa.
mas recordas que só as tuas palavras perduram,
a parte de ti que nenhum silêncio mata,
a única cicatriz indisfarçável
que neste chão de papel rodopia.

magoas-te até ao firmamento,
estrelas e fulgor e infinito,
num outro como só de sangue
como anjo ou conceito
em virtude realizado.

e a memória que me falha não te toca.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

No entanto

são de papel e precárias,
sabem a chutney essas pequenas tragédias que nos tolhem
e no entanto

morrem amantes todos os dias, seres amados e altruístas,
flores e vampiros e bombeiros,
sábios sem bigode,
mergulhadores,
equilibristas
e no entanto

a nossa memória permanece num caos de mil cores,
só nosso
em gradações de faísca permanente.

a esperança é aquele embuste enraízado
que nos norteia,
sólido como a minha mão na tua,
e no entanto

fosse o beco transponível
e não me demoraria à tua porta
a matar o que resta do silêncio
de ombros rasteiros,
derrota que grita na pele
e no entanto

ainda o olhar sedento

agridoce.
e a alma.