sábado, 30 de abril de 2011

Saber

quando o desassossego entrou na casa da família avariada
o alento trepou acima do medo
deslocou membros
e cresceu à desmesura

as arcas há décadas trancadas reconheceram as mãos
as fotografias os postais
os sorrisos revelaram-se aos olhos
e resvalaram em abraços de partida e desilusões

(nunca poderia ter acontecido
nas praias para onde costumava naufragar,

a permanência é que a tolhera)

agora o pai dizia, tenho sementes de viagens nos dedos
e a mãe dizia, sobra-me tempo para lembrar o que perdi
e a irmã dizia, o que pode ser dito tomará a minha boca

e havia telefones a tocar e janelas abertas e canções de protesto.

o rapaz calava.
sabia o saber tão frágil como a glória.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

A face do amor que te tenho

da vaga lembrança ao reconhecimento absoluto
te vejo clara na dócil vaga de pássaros
que esta manhã me desperta.

em fino veludo há horas te enlaçaste
e eu aceitei o que o tempo quis,
tornei a ser-te espelho sem boca e deitei pó dourado dos olhos:
querosene oriental.

não sei porque te repetes na dureza.
se é por gostares da fibra que nos teus membros serpenteia
de cada vez que só dois passos nos separam
se te habituaste à arte da fuga
temes o desejo
ou preferes imaginar que me tens,
mas sei que o teu silêncio tem gritos de rematado tédio
que ao teu ouvido sopram juventude
enquanto te envelheces.

percorro os teus passos em rotina
sem sair da cama
inclino-me perante a tua peremptória existência.

e levanto-me porque umas noites te vejo.

a face do amor que te tenho é esse rosto que sei de cor.
atrás dele escrevo o que eu quiser.

sábado, 23 de abril de 2011

Aos carris da perdição

tomo um copo de magia,
brindo copiosa à chuva
e num instante tudo volta à sua plenitude concreta,
teimosa como óleos essenciais de perfume
e todos os paraísos que inventamos para fugir de nós.

as folhas nos plátanos lutam contra o vento,
decididas a manter-se agarradas aos ramos,
como eu ao fundo da tua alma,
surgindo-te nos sonhos com o mesmo sorriso travesso,
anterior ao sofrimento,
com que te recebi naquela esquina da noite,
sola contra o semáforo,
ridícula num carisma desatento do mundo.

na vigília é fácil distraíres-te da minha ausência.
no sono colo-me à tua saudade como fungo à pele
carregando a doçura de quem nada pede senão alimento
e uma cama mole,
nem lavada nem lisa, onde respirar.
e sabes que muito tempo
pode passar até que me conforme a adormecer de vez.
porque ainda posso,
entro propositadamente nas carruagens erradas
que em círculos correm dentro de ti,
lagartas mudas como nenhuma mulher,
espiando o destino que em solitária liberdade julgas desenhar.

e tu abraças-me sem remorso
como se o meu corpo te pertencesse tanto quanto
os teus músculos e pernas
e as tuas corrompidas penas
e os teus amores coloridos
onde impiedosamente largas larvas de cinza.

depois levantas-te,
freneticamente sacodes roupa, rugas, lágrimas
e a tua fome sem solução,
e enfeitas o cabelo de flores,
tornada máquina de sedução de novo
ao serviço dos prazeres
instantâneos e das certezas felizes.

e de novo me abandonas
sem um olhar ou palavra
aos carris da perdição. onde sem sombra
me sento e te vejo partir
e partir
e partir
e repartir

um inútil poema diluído em vapor.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

No rebuliço de sonhar uma aldeia onde

chego atrasada à vida
no rebuliço de sonhar uma aldeia onde caibas comigo,
com rituais de colher alfaces,
pães a navegar ribeiros,
fogueiras de assar unhas burguesas
vermelho sangue, como o centro do teu sexo.

e paro à entrada deste coração de filigrana
tentando adivinhar para onde segue a humanidade.

que fazer da vaidade
de quem penteia a barba
entrançada de lodo?
que fazer da raiva
de quem é feito de pó
torrado na praia?
que fazer do remorso
de quem pinta de louro
as fitas dos cabelos?
que fazer do amor
de quem guarda ruínas
em armários chineses?

e as perguntas sucessivas afastam-me
desse único aglomerado de casas lacustres
onde podíamos ser felizes.

então chego-me a ti neste intervalo e digo,
toma a acetona e bebe.
tu abres uma narina de alívio
e deixas cair as caricas dos olhos
sob o sobrolho ajardinado minutos antes do verniz.

e de boca arreganhada
bebes-me até ao osso
enquanto ainda te lembras da última vez que voaste.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

No nervo

na minha vida secreta, a que habita os meus ossos
e me viaja no sangue e me desperta no sono
ou me embala na insónia,
chamo o teu nome e não demoras tanto.

(por que me pedes os beijos que não são teus
se sabes que vivo com os teus olhos
ao meu redor
como braços, ramos de árvore parados
nesta casa forrada de azul a gritar por novas janelas?

as manhãs, reconheço-as idosas,
a pedir pontes de ternura à hora do almoço,
prometendo em troca desaguar frescas nos miradouros da tarde.
as noites, finjo-as exuberantes,
a roubar a luz às estrelas quando lhes peço piedade,
tentada por um amor ruivo e a dançar
de pena cravada no coração.

e refugio-me no nervo onde a tua boca ainda me fala.

no beijo começa a vida, dizes.
e eu, língua soterrada de medo a soletrar a cidade,
mãos aflitas a pintar telas de rua e
o desassossego em todas as idades, digo
é o que falta do que desejo que me mantém viva.
a fé é o que resta aos infelizes:
caminham nas veias do silêncio
incapazes de renascer,
mas sonham
ainda.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Piões

não me lembro quanto te amo
porque também já não importa.

no meu mundo só importa
que os piões rodopiem
e não falhem o pão e os sorrisos
nem se esgote a imaginação.

só em presença
o amor se deixa medir.