sábado, 23 de abril de 2011

Aos carris da perdição

tomo um copo de magia,
brindo copiosa à chuva
e num instante tudo volta à sua plenitude concreta,
teimosa como óleos essenciais de perfume
e todos os paraísos que inventamos para fugir de nós.

as folhas nos plátanos lutam contra o vento,
decididas a manter-se agarradas aos ramos,
como eu ao fundo da tua alma,
surgindo-te nos sonhos com o mesmo sorriso travesso,
anterior ao sofrimento,
com que te recebi naquela esquina da noite,
sola contra o semáforo,
ridícula num carisma desatento do mundo.

na vigília é fácil distraíres-te da minha ausência.
no sono colo-me à tua saudade como fungo à pele
carregando a doçura de quem nada pede senão alimento
e uma cama mole,
nem lavada nem lisa, onde respirar.
e sabes que muito tempo
pode passar até que me conforme a adormecer de vez.
porque ainda posso,
entro propositadamente nas carruagens erradas
que em círculos correm dentro de ti,
lagartas mudas como nenhuma mulher,
espiando o destino que em solitária liberdade julgas desenhar.

e tu abraças-me sem remorso
como se o meu corpo te pertencesse tanto quanto
os teus músculos e pernas
e as tuas corrompidas penas
e os teus amores coloridos
onde impiedosamente largas larvas de cinza.

depois levantas-te,
freneticamente sacodes roupa, rugas, lágrimas
e a tua fome sem solução,
e enfeitas o cabelo de flores,
tornada máquina de sedução de novo
ao serviço dos prazeres
instantâneos e das certezas felizes.

e de novo me abandonas
sem um olhar ou palavra
aos carris da perdição. onde sem sombra
me sento e te vejo partir
e partir
e partir
e repartir

um inútil poema diluído em vapor.

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