segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Olha como

olha como as rosas morrem
entre os meus frágeis dedos de nós pronunciados,
cordas marinheiras que me amarram
a este mastro onde nem uma vela persiste,
tranças de fibrosos fios e carne clara
que irremediavelmente me prendem
à minha inútil liberdade
e de ti nenhuma memória guardam.

morre a esperança com elas.
e o entusiasmo festivo das ondas.
mas antes que lhes sequem as últimas pétalas,
convocam de novo o amor como se fosse vivo
e engolem o seu único filho com a pontualidade atenta
dos melhores gageiros.

já não comem água
nem luz, estas rosas,
senão quando me vêem gesticular ansiosa,
de coração a atrapalhar os revigorados jardins
que em mim despontam,
temperados a suor e férteis como
o bolor das carcaças e o tutano dos ossos.

sacrificam-se pelo meu rumo. e ameaçam
levianamente levar com elas as tuas cores,
sinaléctica de desactivadas fortalezas que à noite
me tranquiliza e pela manhã me esmaga
de medo.

olha como oiço fados e tangos e boleros no convés
para me distrair da morte das rosas
e como afinal talvez me baste um sonho transatlântico
e uma puta filipina
para flutuar dançando
até ao futuro outra vez.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O vil poder

E eis o vil poder do amor,
transformar o possível em pranto
e o impossível em música de dança.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Reparaste a ferida

no teu coração nómada, a pesar três toneladas e meia
às vezes quatro,
quando cedias ao relento que desejava abraçar-te,
cantava aquela irreprimível vontade de amor
e uma harpa de estéreis cordas douradas.

não aparecias nos meus poemas, nem esse canto mendigo.
mas as tuas orações, não tão silenciosas quanto as minhas,
feitas para serem amplamente ouvidas
e reluzentes como as letras das canções inglesas,
já traziam metade do meu reino
levantado
entre as portas do altar.

admitias a beleza mas nunca a eternidade.
e não compreendias os prazeres da vida doméstica.
tinhas trinta e nove anos,
um casal de caturras e um ar condicionado
e acreditavas que os dias recolhidos
jamais seriam melhores que os outros que se vendem por aí,
em promoções de odisseias sem ulisses,
com gengibre e palestras e visitas guiadas a museus,
serviço de quartos e massagens incluídas.

caminhavas num júbilo disfarçado,
não fossem os remorsos ouvir-te,
e na sombra precária da compaixão
vigiavas os olhos despertos dos que nada viam
e os corpos encantados dos que pouco criavam além de tumultos.

temias pela humanidade. e pela tua inocência.
abrigavas o esquecimento na memória
e na boca, a atenção.

até que me viste,
relâmpago trivial de magros medos
e dedos aflitos, em domicílio fixo nas vastas paisagens
dos círculos ruinosos e das raízes funestas.

e reparaste a única ferida irreparável do teu ser.
para
ao trilho da inquietação, teu velho conhecido,
tornares brevemente.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Para onde

certo dia chega a manhã em que decides recomeçar.
preferes a água ao vinho, a clareza ao vício, o dia à madrugada.
e vais buscar aquele novo chá
que te ofereceram numa festa que já não recordas.

a flor que se abre nas borbulhas do bule parece-te um milagre, ainda que saibas
que o único verdadeiro milagre que conheceste,
teres amado e sido amada,
não voltará a ser mais do que um sopro difuso
na aguda consciência que reconstrois.

e bebes a infusão e recomeças.
leve como música,
as vísceras sobre a mesa, a encolher a olhos vistos
os rios de sede a morrer na garganta
a noite expulsa do sangue
e o desejo (esse antigo manto que bem reconheces,
tão bem como as outras roupas que costumas usar,
a imaginação tecidas e frescas como pedra,
a embrulhar-te de novo,
alheio a versos e aos sonhos adverso.

depois sais para a rua e apanhas a chuva toda.

o silêncio corporiza-se, a porta da casa fecha-se.

e a tua alma desata a correr
para onde trepida a vida.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

E enfim ponho um sorriso nupcial

nas pequenas dores destas meninas
as minhas penas imerecidas revejo,
e bocejo.

a banalidade do sofrimento
já só me entedia, agora que sei o pouco que se esconde
numa boca minguante para além dos beijos prometidos
e que para nada serve a gangrena nos membros,
a ternura nos braços,
o enjoo no ventre.

(prefiro telas mentirosas, e rosas e rosas.

como não escolher as unhas postiças,
as sedas orientais e os ganchos de cabelo
que elas me largam pela casa,
em vez dos pingentes de espirituosas lágrimas
que tanto anseiam que beba
?
como não mergulhar nas rendas
que sob as minhas botas ardem e pendem das gavetas,
e antes desejar as suaves emulsões
que chamam os meus lábios,
oferendas de pele nua
que é branca e seráfica
mas não tua
?

(prefiro épicos martírios, e lírios e lírios.

uma voz eclode no meu pulso,
diz-me que a glória torna ossos em vidro
e vale menos do que que um instante de vida.
eu assobio a sangue frio.
adio a memória e deslumbro-me com as obras sem autor
selvas areais pedras montanhas
coberturas de deus como os corpos
que à noite mastigo intocada contra a fome.

(prefiro abismos solares, e mares e mares.

de artérias fendidas nas pálpebras, nas vértebras,
nos seios ao espelho,
vergo-me a esta paisagem que me transfigura,
trancada no túmulo de ar onde
os meus versos persistem redondos, sem surpresa.

e enfim ponho um sorriso nupcial neste rosto viscoso
como quando te via a morrer de sonhos e interminavelmente
remexias na mala à procura da pistola,
da esmola,
ou da esperança, ou do baton.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Os nossos olhos conspiraram

na muralha dos desgostos
a hera brava cresce ainda o teu nome
e até que alguma verdade se revele
espero lentamente não conseguir o amor.

nesta altura não me meço
senão pelo tamanho do que descubro
em prólogo (ou será epílogo frouxo?
da grande conquista que hei-de abandonar.

o vale dos espelhos
(em dúvidas brandas repartido
que desde sempre nos separa
repete as mesmas perguntas desde o primeiro dia.

as nossas mãos tocaram-se
sem alternativa
e foi loucura (ou vontade turva?
a acender minúsculas luzes na cave dos sonhos.
os nossos olhos demasiado abertos
(ou cegos de tanto ver?
conspiraram contra o sol.

já passei por melhores partidas do que esta
em que mil línguas me convidam à travessia
e em alvoroço a voz do meu peito
me pede para ficar.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

De fatal, nada

partiste quando ainda tanto
tinhas para me dizer
para que eu para sempre amasse a tua boca fechada.

amor sem afagos não será amor já, sabias.
o desdém dos sábios
nos sábios se manifesta em pranto.

partiste para me ensinares o silêncio e
noutro abraço achares a tua casa.

de fatal, nada.
infame crime só o sorriso marmóreo e
as verdades inúteis que inscreveste
nos meus olhos mordidos de poeira.

partiste com razão.
pisando violetas lírios escrituras pelo caminho.

não sabias que
partir por partir é a suprema liberdade.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A expiar

na trincheira do luto,
dentro desse quarto desabitado à espera de altar
onde nunca as crianças brincaram,
sou uma menina travessa à espreita
entre o armário das botas e a bicicleta.

rasgo as roupas ao gato e confundo hormonas com problemas,
eros e psique em guerrilha,
enquanto te vejo agir como se não soubesses
que todos os dias se morre de fome,
até nas esquinas do teu bairro.

entretenho-me a remover verrugas do pénis
que mora na minha cabeça.
não sei que mais faça
mas noto que o meu ritmo cardíaco desacelera.

o truque é entrar pelo flanco, penso,
nunca de frente, de peito aberto,
sei que te assusta a vulnerabilidade dos que amas.

tenho sintomas de demência,
hemorragias de emoções misturadas com conceitos.
mas sinto ainda o desejo a atalhar caminho fora de nós
e a conduzir-nos precariamente ao futuro.

rapo as axilas, tomo vitaminas,
pestanejo de vez em quando, sem ruído, à espera de ser infectada.
o teu hálito é a bactéria que o meu corpo chama,
escravo do que quer dar ao teu.

mas desidrato de desatenção.
sei que preferias perder uma perna a aceitar-me nos teus braços.

rastejo em silêncio até ao fogão.
a indução está em marcha
e eu detenho os olhos nos leds psicadélicos atrás dos vidros,
nos cordões de arame que suspendem a luz,
nos bancos novos sob o balcão.
procuro os turcos que arrumei nas prateleiras da cozinha,
verifico o prazo de validade dos orégãos,
o estado da chaleira e o aroma do chá.
não encontro aspirador,
talvez ainda varras o chão semanalmente,
horas antes do ritual das vozes em coro
que descem escada abaixo,
incomodam os vizinhos
e num eco estrangeiro tomam o mundo.

doem-te as costas e o coração e as ideias, mas não podes parar.
és um adágio de vida compulsiva com a sorte de uma carreira,
instinto material herdado da miséria
e duas espadas de dois gumes
aquáticos, pendentes do tecto,
plástico azul a rodopiar na marquise que te vê dormir.

servem-me de chuveiro quando sais para o trabalho.
a banheira sempre foi grande de mais para mim.