quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A expiar

na trincheira do luto,
dentro desse quarto desabitado à espera de altar
onde nunca as crianças brincaram,
sou uma menina travessa à espreita
entre o armário das botas e a bicicleta.

rasgo as roupas ao gato e confundo hormonas com problemas,
eros e psique em guerrilha,
enquanto te vejo agir como se não soubesses
que todos os dias se morre de fome,
até nas esquinas do teu bairro.

entretenho-me a remover verrugas do pénis
que mora na minha cabeça.
não sei que mais faça
mas noto que o meu ritmo cardíaco desacelera.

o truque é entrar pelo flanco, penso,
nunca de frente, de peito aberto,
sei que te assusta a vulnerabilidade dos que amas.

tenho sintomas de demência,
hemorragias de emoções misturadas com conceitos.
mas sinto ainda o desejo a atalhar caminho fora de nós
e a conduzir-nos precariamente ao futuro.

rapo as axilas, tomo vitaminas,
pestanejo de vez em quando, sem ruído, à espera de ser infectada.
o teu hálito é a bactéria que o meu corpo chama,
escravo do que quer dar ao teu.

mas desidrato de desatenção.
sei que preferias perder uma perna a aceitar-me nos teus braços.

rastejo em silêncio até ao fogão.
a indução está em marcha
e eu detenho os olhos nos leds psicadélicos atrás dos vidros,
nos cordões de arame que suspendem a luz,
nos bancos novos sob o balcão.
procuro os turcos que arrumei nas prateleiras da cozinha,
verifico o prazo de validade dos orégãos,
o estado da chaleira e o aroma do chá.
não encontro aspirador,
talvez ainda varras o chão semanalmente,
horas antes do ritual das vozes em coro
que descem escada abaixo,
incomodam os vizinhos
e num eco estrangeiro tomam o mundo.

doem-te as costas e o coração e as ideias, mas não podes parar.
és um adágio de vida compulsiva com a sorte de uma carreira,
instinto material herdado da miséria
e duas espadas de dois gumes
aquáticos, pendentes do tecto,
plástico azul a rodopiar na marquise que te vê dormir.

servem-me de chuveiro quando sais para o trabalho.
a banheira sempre foi grande de mais para mim.

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