quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Casa morta

esta manhã senti a tua luz inesgotável
a bater em cheio nos meus olhos
e encostei ao ouvido as tuas palavras
fechadas no búzio onde
(para meu consolo
só assobiam mares de solidão.

à noite, quando apertar nas mãos
o rio da minha consciência
dizendo-me que o tamanho das coisas depende da perspectiva
e lembrando-me que ao teu lado
tive tudo o que os outros tiveram,
nem mais nem menos
amor
música
cimento
ginástica,
tentarei esquecer mais uma vez que a nossa casa morreu
(e os recantos todos do jardim também
no dia em que fechaste a janela
aos meus quatro sonhos diários,
entalados no pão de deus.

nas paredes gastas,
no telhado podre,
em cada canteiro murcho
resta agora
apenas uma memória de pranto
com três anos e cor nenhuma
que sedentariamente se senta
(de manta sobre os joelhos
no sofá da melancolia,
relendo vezes infindas
(até se tornar pedra
aquela frase roubada ao kafka,
a esperança existe mas não para nós.

nas paredes gastas,
no telhado podre,
em cada canteiro murcho
hoje é só mais uma quarta-feira
(de cinza
pendurada no cabide do tempo
e justa de mais para te servir.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

A arte da fuga

lês o terror no espelho, arquivado sob os teus olhos
pensas no suicídio
em sexo
na arte da fuga de bach
(para sempre incompleta, como nós
com todos os dedos enfiados no lavatório
embora saibas que não basta lavares as mãos
para te desembaraçares de mim
terias de lavar o coração.

sem pressa, como de costume,
penduras a camisa
que a tua mãe zelosamente engomou
no charriot interminável do teu quarto
e lembras-te que há um fosso intransponível
entre o teu corpo e a roupa que vestes
como entre a minha pele e a tua,
(perpetuamente inacabadas até ao instante
em que me convidares a rasgar-te
e a beber o teu sangue inquieto
da nossa velha fotografia.

agora que nenhum pássaro te canta,
que não carregas estrelas nem pertences aos meus poemas
(inteira como um cadáver, já não ouves
o maior perigo é o fracasso que te precede, digo.
e tu dizes, deixo sempre para amanhã o que perdura.

e trancas-me a porta e as veias,
ameaças o terror ao espelho, de rosto fechado
e em verso extasias-te com um novo amor
enquanto me adias para o juízo final.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Ao abrigo do passado

não invejo esses olhos devolutos
(fantasmas à espreita
como os dos palácios italianos
onde mortos deslizam nas paredes
a alimentar fendas de névoa e osgas

nem desejo esse majestoso tronco
(de peito inchado a suster a respiração
como os das estátuas gregas
e os das árvores que não merecem
como nós, o fim do mundo.

nos dedos
cinco direitos, outros esquerdos,
só guardo a infância
(de luvas e camisolões
no recreio arenoso,
teimoso de risos claros e sem relógio,
a correr contra a campainha.

assim me refaço
(ao abrigo do passado
para resolver o grande enigma.

terça-feira, 10 de julho de 2012

O meu agora

verificas mensagens
ao dia dois
apagas versos
ao dia quatro
e ao dia sete não sais nem pestanejas
no patamar da casa onde
em dias distantes me esperaste
de abraço ferido
e memória carregada.

sempre que me lembras
dói-te cada um dos
trinta e cinco músculos
e os vinte e sete ossos das pontas dos dedos,
mas logo te recompões;
fechas a porta
desces as escadas sem pressa e atacas a marginal.

quando ao dia dezassete regressas
para arrumar o quarto
tudo se põe a morrer, incluindo a tua pele
como se eu tivesse no meu rosto retido
todo o teu sangue
e nas minhas mãos, como armadilhas
guardasse ainda o aterrorizado amor que
aos dias trinta desfazes em lume.

e nenhum fantasma te pára.

tenho a vida toda para te chorar, dizes.
podes dizê-lo porque o teu tempo continua barato.

o meu agora vale corações.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Exagero

o desespero leva-te a acreditar em dias felizes

sorrisos pasteleiros
vívidas experiências
cores de sol
facas de desejo atiradas ao coração
sangue prestável e futuro

não queres sal
nem mais fruta verde
amarga dureza ou
fome de morte
nos teus caminhos

avanças de voz baixa
cabeça erguida
resolutos passos
com os braços carregados de tudo o que
por fora
te acontece

já nem me acenas
e ao meu exagerado amor

no meu mundo deixaste outra
a fazer de ti
que parte pão eternamente

e nunca apanha as migalhas

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Exílio

enquanto ouvia os teus velhos segredos
a cair
(um a um
nas carruagens de trémulo azul,
o comboio continuava
(assombroso
a sua viagem ao sombrio vale
(rumo ao fumo
entre pontes de vinil e desesperados montes
feitos com caixas de ovos
revestidas a fungos e líquenes
tão antigos como a tua primeira morada

chegava-me a eles
de flanela nas mãos
e toda sorrisos sem preço
pronta a silenciá-los num suave embrulho
e a arrancar
(ao quarto
dois metros de carris
enquanto o rufus martelava
as vantagens do exílio
nas teclas pretas

mas a mudez
que à cadência dos teus segredos sucedia
como remo afundado
pássaro estendido
ramo seco
nunca me satisfez

por isso comecei a cavar
(de enxada ao alto no soalho
contra a fome
que em segredo deixaste
neste coração exilado

terça-feira, 5 de junho de 2012

Pai

cabe a minha infância
(e os teus afazeres
no ferro velho.
e aquela fotografia
contigo
(de dedos enlaçados
as botas ortopédicas
as jardineiras
os sonhos todos na medida da franja
no quarto atrás da escada.

serve o meu espanto
(e a tua ausência
para medir
(ainda
o amor que levaste
no padrão repetido da gravata
(em cinzas
que foi do meu irmão.

pudesse eu lembrar-te
sem me tremerem os olhos
(como me tremem as mãos
e permanecerias de pé
crescente na terra
entre as flores
(e os meus afazeres
apesar de nós.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Mas isso era se

sem apetência para o êxito
que à preguiça sempre escapou,
o teu amor (imprestável para poema
via-se ao espelho, indiferente à cor,
nas montras das sapatarias.

prosaica (como a passagem das horas
andavas descalça.
e dizias,
sou despida quase feliz
nas pedras, nas nuvens, nas almofadas.

só de cordas (sobre os ombros
para me atar
a ouvir o riso
das manhãs (sem roupa
arrepiada de medo
e com pássaros à cabeça,
deixavas-me estar
na sombra.

à noite eu tinha tempo
e colhia morangos do teu corpo
(nem sempre biológicos
no resto
desejava que te vestisses,
calçasses
e finalmente descesses à cidade.

mas isso era se
as montras tivessem a cor
(a forma dos olhos
das manhãs.

terça-feira, 27 de março de 2012

Lembro-me da água toda

comprei-te a camisa
num inédito repente
(nunca fui de te vestir se não de lábios
e pedi-te que a usasses
tão rente à pele como eu
.
fazia-te doer, dizias, o coração
como os quadros do Rothko
(de uma só cor roubada à alma
te feriam os olhos
naqueles dias de dezembro americano
.
não liguei. como poderia
se cada um só pode saber
da sua dor e nunca a tua
me chegou aos ossos
(muito menos à respiração
?
despi-te a camisa
(pintada de fresco
e abri-te túneis de humanidade
ternamente
eternamente
a partir do umbigo
...
lembro-me da água toda
cada gota
cada onda
até
(por fim
alcançar o teu fim
.

terça-feira, 20 de março de 2012

Prefiro os animais sem passado

fremente vai
este dia de primavera
com as suas saias vaporosas,
um só tom de verde a colorir a erva,
a azálea de braços estendidos
e a cerejeira em flor
(que te convida a entrar
como aquela no pátio da modesta casa normanda
habituada ao amor feliz.

levanto as pálpebras para a lua redonda
a despenhar-se dos telhados
sobre as ruas onde se riem
crianças velhos tolos
e passo a mão pela vista.
troco-a por pensamentos
enquanto outra vida se vai urdindo
na minha pele à tua espera
(como penélope a tecer a sós o perdão
que a hora incerta te entregarei.

temo entretanto falar alto
e acordar a tua longa ausência
mas ainda digo
baixinho, prefiro os animais
sem passado às árvores
(eternas como deuses sem estação.

e abraço os teus olhos que em água
dizem, toma-me
como as estrelas perfuram a noite
(enfim.

terça-feira, 13 de março de 2012

Anterior ao pão do dia

agora que já não me dói a memória,
amo cada manhã por usar
como um vestido perfeitamente engomado
à espera de sair
e essa pele na minha pele
enquanto não acordo,
anterior ao pão do dia.

na cama lisa
beijo esse ar abençoado
que ao meu lado dorme
mas pede licença para entrar nos meus sonhos
e antes de pisar o chão
persigo o aroma das flores que se partiram na noite
e faço mais um traço vermelho
no calendário atrás das almofadas.

então solto-me do abraço
e fixo residência em mim
desejando apenas tornar-me mais nítida
ao atravessar a neblina dos teus olhos.

e lavro no rosto o campo da felicidade
(adoravelmente branco,
como esta folha por escrever.

segunda-feira, 5 de março de 2012

O mundo todo para te deitar

nas minhas reais ficções,
sou a projecção verbal do que nem me atrevo a pensar
e enumero
as vezes em que me fingi idiota (era prático e seguro
as cicatrizes acima do tornozelo (chamo-lhes jonas
os sulcos no rosto com o teu nome (dão para plantar oásis
os beijos que me recusaste (retalho-os inteiramente, humanos
os medos atirados para um canto (indiferentes às fotografias.
entro na mesquita como quem vai à discoteca
todas as semanas sem pagar bilhete
nem sequer o consumo mínimo,
e desenlaço um deserto por altar
e estendo tapetes para os joelhos.
e tenho o mundo todo para te deitar
enquanto a água me abençoa o corpo em obras permanentes,
fechado de novo como quando
não me vias.
e digo, não há bairro
alto como esse onde fomos iguais
ao que éramos antes do tejo desaguar no bósforo, dizes tu
(e ignoras o teu amigo de turbante,
cachimbo aceso ao espelho e o coração a transbordar
do copo (como se o amor não coubesse num só mergulho.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Apontando a Bizâncio

não espero riquezas nem ambiciono alegrias,
ou que me oiças os versos
e os repetidos risos
(sei que só a boca pelo amor tocada
ganha voz
pois também as folhas
mudas permanecem nos ramos
enquanto o vento não as faz cantar.

e assim nas formas balsâmicas do silêncio
encontro eu a casa das minhas palavras
(tuas
como o velho sofá
onde jaz o pequeno buda de pedra
há anos escondido
da inveja.

nenhuma morte nos afastará
(segredou-me ele antes da queda
e eu quase acreditei: no calor da tua mão
a fé era fácil como caminhar.

passo, como sabes,
pela tua vida e a minha
como passei
de asas caladas e alta glória
e hei-de passar ainda
rasando a tua janela
na plumagem do pássaro de yeats
apontando a bizâncio e junto aos sábios
descarnada e a rebentar de febre
(alma e coração no artifício
trabalhoso da eternidade.

só os frutos nas árvores são perfeitos e mesmo assim
nem todos,
dizes quando passo.
eu aceno ao mundo aí em baixo e digo,
que múltiplas manhãs de verão te sucedam,
em tremenda e perfeita humanidade
(contradição de quem nada pede, exigindo tudo

tanto dá.

morrerás, como eu
de flor ao peito e fios de esperança no cabelo.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Hoje não há festejos

queria contar-te os meus dias novos
e de como consertei
os meus sonhos e as persianas
que me descem sobre os calafrios
até à espinha (dura de acordar

gostava de te falar dos mundos que estranho,
das guerras sem tradução no teu idioma,
das pazes que não fizemos, das mãos quentes
apagadas no cinzeiro,

e não forçosamente ao ouvido
nem abraçada (sequer

queria mostrar-te como abro e fecho as portas desertas
por onde passam as noites a caminho do bairro
de braço dado
às duzentas mortes com nome de mulher
que conheci
e dizer-te que a vista me abisma e a luz do amor me doi
mais ainda do que a memória

mas hoje
não há festejos, não há
chuva e dilúvio
nem prato e faca
ou vinho ou queijo (ou chá e pão

só este canto maduro, enxuto de lágrimas
a rasgar (teimoso
o silêncio de gelo dos teus últimos olhos.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Se lhe pões um ponto

esse verso diário
que na tua boca
se forma às nove
trago no ouvido
(disfarçado pelo sol nos cabelos

o amor que me dás
arrumo na lancheira
e como à secretária
quando bate a uma
(com talheres de tinta e verbo

pára-me o pulso
à roda das seis
treme-me a folha
as mãos descaem
(pela imprestável memória

às oito sacudo
o vento do casaco
sento-me à mesa,
mordo o lábio
(enquanto chegas para jantar

o silêncio vem
abraça a alma
abro-me, dispo-te
passa das onze
(ressoam suspiros pelo quarto

e cresce, cresce
como menino
o nosso poema
noite adentro
(tão bem ajustado ao tempo

se lhe pões um ponto, eu ainda o publico

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Nessa funesta casa de campo

nessa funesta casa de campo
de onde nunca nasceram flores
nem sequer se abriram bocas de espanto
(se não ao fim dos ossos,
segurei a tua morte e ascendi à poesia,
de pão de centeio no bolso,
tomate, folhas de prata e três fatias de rosbife,
sem relógio.

ouvia-se a fome na cidade
(triunfante
os assobios do asfalto, as paredes remendadas

e por vezes havia luar nas janelas
a deslizar-nos para as entranhas.

e quando sob a manta me tocavas
parecia que me atavas um nó por dentro
de modo a que jamais nos separássemos.
mas
(tudo em ti era um corvo,
partias todas as noites enquanto te falava
com a cabeça inclinada, voando
de mãos paradas nas minhas
e os olhos em filmes dos Óscares,
dardejados de fantasmas.

e eu, num débil gesto de vida extraviada,
agarrava-me ao útero vazio e cobria-te
(de alma silenciosa
à espera que regressasses.

já não espero nada.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Como quando me perguntas

vens gritar-me sem razão aparente
o teu secreto desalento
em espuma,
dentes e volume
de pedra por esculpir

chegas-me pelo avesso
a fintar a chuva açucarada
que te cai liricamente
do meu peito ruminante

e não sabes que mais fazer ao desejo
que descarregas das mãos
para as gavetas
e a tábua de engomar

eu entrego-me ao jogo inútil
de esfacelar a felicidade
sem sequer te beber os olhos
ou secar os meus,
como quando me perguntas,
julgando que sei, se o amor é importante
e eu te digo,
tanto como a água,
enquanto deito os dedos
na matemática dos teus gestos
e viro a cabeça para sul.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Melhor (talvez

entrego-me ao amor sem saber o que sorver
desse sabor a estrelas (de lume essencial
que trazes nas mãos.

entendo apenas o que o teu rosto (nada literário
me diz,
consciente de que (como todos os seres
temos os dias contados
apesar do ímpeto juvenil com que matamos o tempo
e prendemos enfeites (que caem um a um,
como as fachadas,
ao coração.

organizo as cores (noite dentro
em malas de brincar
e pinto épicas batalhas (tão inúteis como as outras
nesse silêncio de mágoas antigas
que nem quando bebes gargalhadas
consegues esconder.

deixo-te (em momentâneo aturdimento
abraçares-me pela cintura,
desconfiada do que me ofereces
quando consolo
é o que o teu olhar pede (cegamente dominador
como a minha mão direita
ao escrever.

melhor (talvez
seria levantar-me à hora dos padeiros
para (num vagar doméstico
negar cada verso que longe de ti levo
da imaginação.

e entregar-me (sem poemas
ao grande mundo onde (em chaga
nos afundamos.