terça-feira, 25 de maio de 2010

Segue o porvir

na tua fome de humanidade reside a tua labuta,
na tua ilusão de bravura urge o teu destino.
e eu, no meu eléctrico vagar
de pólos e pontos e poros
e pés em carne viva e remoinhos de areia,
abraço-te para que não me doas
enquanto a neve me tinge mais dois cabelos.

e ato o amor ao mar.
e entrego-me ao porvir.

moro entre o lodo e a festa,
entre o calendário e o riso, entre mares
neste navio abismal,
a vender utopias a peso de convite
e sólidos vapores
para consumo marinheiro.

e todos os dias encontro
um tempo novo de oceanos ditosos
e rugas nenhumas, para um derradeiro
abraço feliz.

a essência, não vivida, segue à margem.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Dos livros que amei

fujo
dos olhos perigosos e de abraços que tentam agarrar-me por fora para disfarçar delirantes vácuos,
tão antigos como o ciúme.
e de amores mais que tácteis,
daqueles que enfeitam os livros que em tempos amei.

preservo-me do medo através da ternura e parto-me em gritos
que só se acabam quando aplaco a muda fúria burocrática do quotidiano.
vou desfiando segredos e partilhando silêncios neste mundo de papel. e sento-me cansada na cadeira da desgraça.

mas toda eu sou de luz e puro sentimento
e até da desgraça consigo rir-me,
aprendi a fazê-lo há muito, com o beckett o cesariny o lorca,
até com o shakespeare e a freira mariana.
e sei que não voltam a tomar-me as lágrimas,
não voltam a tocar-me os inúteis rituais,
não voltam a tolher-me as pequenas mortes diárias.

hoje digo,
os meus dias são habitados por lírios de feltro e raios de sol.
e tu dizes,
todas as manhãs saio das nossas cabeças para inventar a paz.
tanto melhor,
assim facilmente me desvio das florestas sombrias
e protejo os pés dos tropeções.

e tudo o que em mim era impermanência
se dissolve em corrente na resoluta água de um beijo certo.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Mãe

a tua fragilidade dói-me nos braços,
tem o peso de mil soldados
e um tremor de natas,
todas as promessas falhadas
e sete décadas de desilusão.

(e vejo lenços ao vento
como bandeiras a acenar desgostos.

nos teus olhos trazes embrulhados
os sonhos de quem amaste,
e fachadas de igrejas vazias,
onde nem as tuas preces cabem
nem a minha fé te fala.

(e vejo rostos de medo
fechados ao mundo
e sombrios como o mar ao crepúsculo.

as tuas noites brancas à espera de ternura
vertem-se em cascatas
que te comem as pestanas
e embalam esse inverno
que tanto em ti se alonga.

mas na memória
(que sem pudor reescrevo, porque posso,
vejo muitas outras coisas:
o meu sorriso a povoar o teu sorriso
o meu abraço a inventar o teu corpo
a minha mão a ajustar-se à tua
em silêncio cúmplice
e autêntico conforto.

como se o amor te bastasse.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Dos trevos

o tempo dos trevos é difícil, amor,
como não é
o das rosas fúnebres
nem sequer o dos enigmas
dessa nossa esfinge forrada à Roy,
bonecos a cores e onomatopeias desenhadas,
tarde adentro em pulsar engenhoso.

o tempo dos trevos é difícil, amor,
como as vidas que cedo nascem
e mal se erguem enquanto o sangue não madruga
e a expressão do medo dorme lisa.

por isso
não venhas falar-me desse tempo, amor,
e admite tempo aos trevos
para que retornem ao seu verde fulgor
e lentamente se abram às folhas de sal
que em líquidas paisagens
verto sobre o teu corpo,
agora de sol.

ainda ontem, amor,
em ânsias de bronze fremente,
tropecei no nariz da esfinge.
estava senil como um velho
e tranquei-a na gaveta do meio,
entalada entre peúgas,
inanimados leques
e memórias reescritas a pincel.

nada temas, amor,
amanhã a chave será tua.