terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Neste país

antes de ouvir a tua voz, ouvi-te pensar, embebida em cândidos sorrisos e soluços difíceis.
antes de tocar as tuas mãos, senti-as nas minhas, enlaçadas pela corrente da escrita.
antes de ver os teus olhos, vi-os nos meus, num reflexo de luz branca.

já tinha visitado este país de palavras cruzadas, vibrado e definhado sob este luar que queima, neste brilho solar que assombra, com esta mesma névoa onírica a cercar-me num abraço imobilizador e a travar-me a marcha rumo ao sossego.
mas reparo que tudo nele mudou.
porque nada se repete,
nem a mais pequena sílaba sibilina,
neste país renovado a cada página,
onde nenhum coração pode ser domesticado,
onde não há dor que eduque nem alegria que liberte.

inventa-me diamantes que sangram, dizes.
não sei senão sentir, digo eu.
aqui todos os caminhos vão dar ao remanescente das nossas vidas. recomecemos do princípio.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

O jogo

quando recebo dos teus olhos o silêncio, esvazia-se a lua chorando, a justificar-te a estratégia, cúmplice fogosa do tédio que te veste de azul.
e vejo que nos teus pensamentos esvoaça a saudade do pecado, aquele febril entusiasmo de se dar ao erro e errar nos campos da sorte em vertiginosa dança.
toda sensação, tão do mundo como os peixes e as árvores.
só o prazer ébrio me derrete a neve do coração, dizes.
nenhum inverno dura sempre, digo eu.
e tu abres a voz dos teus olhos por um instante, num truque infantil que sabes que me seduz.
depois fechas-te de novo e avanças para as casas de rir e comer nuvens e agarrar chuva.

nesse jogo sei que não posso defrontar-te.
então retiro-me de cinza, para longe do teu chão.
e escrevo em espiral, como quem se deita para morrer.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

O reino

ao fundo da minha casa lacustre, a mulher.
uma cama de pipocas, mutantes como nuvens, e nada mais que um suspiro entranhado no soalho de água.
o amor nasce-me do lado errado, digo.
és o meu trono de sonho e sal, diz-me ela. e senta-se de ouvido preso ao meu peito desarrumado, desejando descortinar as minhas indecifráveis vontades num qualquer recanto arfante.
e eu,
de olhos cingidos, como fósseis na pedra, aos seus olhos,
sei-me quotidianamente em renascimento desgovernado, reinventando-me em etnias múltiplas e volúveis orientações.
toda nova a toda a hora, luto para identificar a ponta do meu próprio nariz e reconhecer as minhas feições no espelho. mas o que mais me custa é carregar o cabelo no alto da cabeça sem pensar nele, na sua inútil permeabilidade, na sua dócil imortalidade desde sempre morta, na sua impostora sensatez.
há anos que não oiço o canto das cigarras nem sinto a erva húmida sob os pés ou a plácida frescura da noite nas costas.
e coisa alguma me falta,
porque nada desejo mais que um par de horas.
nesta privada anarquia, reina a mulher.
sem poder nem submissão. sem programa de governo nem orçamento.
às vezes tudo me encanta, até o rumor da ferrugem na canalização.
e sou um povo simpático.
noutros dias tudo me é insuportável menos o mar.
e ela expatria-me com um gesto calado,
esperando que eu me renasça mais uma e outra vez.
sua súbdita indómita e plural.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Fantasia

gostava do modo como o teu corpo fremia ao meu encontro, como se todo o teu ser dançasse por te desejar. eras um exemplar puro do mais puro dos vícios, esse amor que roda a chave dos sonhos e abre fulgores etéreos no sangue.
na minha circulação, não havia margens. só um imenso caudal de sensações, atolando de gestos as minhas mãos.
e na tua coutada de mulheres fracturadas, onde por vezes me levavas de visita entre galanteios falsos e beijos mornos, lastimava as ferozes paixões do teu passado.
dizia: a tua nostalgia fere-me.
e tu dizias: as nossas horas cintilam como a aurora.
até que um dia espetaste um espinho imortal na minha coragem.
e eu desisti da realidade.
hoje, pela derradeira vez despojada de máscaras e como de costume alienada pelos meus próprios sonhos, protejo-me do sol no alto desta torre onde um dia cresceu uma árvore molhada, com raízes à porta, tronco delgado a suportar o corrimão da escada em caracol e um emaranhado de ramos, selvagens como o teu cabelo ao vento da tarde, a despontar folhas no céu riscado de cinza.
tenho ainda o teu definitivo adeus a estalar-me no peito e a saudade a martelar-me os nervos.
mas é só porque me canso de ser eu, sem ti o dia inteiro, que à noite escondo os olhos no teu retrato e me deito contigo numa seara de trigo.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

No fim

naquele outono havia riso nas almofadas e as palavras aconteciam-me como acidentes. tu eras uma felicidade vibrátil que pungia no meu espírito e eu era uma tristeza porosa que dançava sobre o teu corpo. as nuvens escondiam-se ao nosso abraço e os nossos cabelos ardiam e provocavam incêndios dentro de casa. eu atravessava os aros em chamas, como os grandes felinos amestrados no circo. e tu engolias o lume dos livros e das colheres de pau.
de madrugada a lua aninhava-se sobre o telhado para nos espiar o desejo entre as frinchas, espreguiçando-se languidamente na penumbra fria da cerâmica vermelha.
ao nascer do sol eu subia as persianas e tu dobravas os pijamas e a intimidade em gestos desenvoltos, de canto do olho no relógio e perfume no colo.
depois calçavas as botas, abrias a porta e voavas.

mas eu podia ver-te pelo dia adentro, presa às minhas pupilas, a rasgar o céu numa túnica de musgo, entre as folhas amarelas e o fumo das castanhas.
naquele outono a vida era um brinquedo novo a cada manhã e as noites não tinham recantos sombrios como os jardins barrocos.
ao fim da tarde tu chegavas-me em alegria e vestias-me de beijos.
e eu recebia-te como ao ar, numa naturalidade inteira, com todas as velhas mágoas embrulhadas numa trouxa, debaixo da cama.
oiço cânticos dentro de mim, dizias.
sou eu que em ti canto, dizia eu.
e oferecia-te mais um poema para enrolares nos braços, junto aos outros, naquela caligrafia ornamental de que te orgulhavas.
e ficavas.

e ficaste.
até gastares todos os beijos. até eu te perder nas minhas pupilas.
até entregarmos o amor ao inverno.

e a poesia acabou.