segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Mosto

este precioso amor em gotas de suor aromático se multiplica, desfaz e refaz. o ritmo é lento, como a branda fermentação das uvas no lagar. e o sabor tem a doçura da inocência, a espessura da hesitação, a pureza da infância.
e desliza na minha pele como a minha pele na tua.

o tempo está à espreita e ameaça passar,
atravessar o vidro e abraçar-te, sobrevoar a cama e beijar-me, escavar o chão e tomar-nos.
eu embrulho-me nos teus cabelos e não o detenho.
ele que passe e abrace e beije e escave. e nos tome.
como só ele sabe.
um dia há-de calar-nos para sempre e converter-nos num minuto de memória na memória de alguém.
não sei quem, não sei quando, mas sei.

somos de castas seleccionadas, dizes.
e eu digo: a vida poda-nos como pode, até à seiva.

tu embrulhas-te nos meus dedos e espreitas o tempo em espasmos. assobias como se o ignorasses e perguntas a ti mesma para onde vais. e ris-te dos meus projectos e da minha lúcida embriaguez. e das lacunas das minhas convicções. e das vozes ensurdecedoras do meu silêncio. e das verborreicas rugas do meu pensamento.
e ocultas-me os sonhos que tens.
temes não ter tempo ou talento ou gosto para os viveres.
um dia.

quanto mais envelheço menos me entendo, dizes.
e eu digo: somos novas como mosto.

na varanda desfraldada sobre o curso das horas, encontro-te finalmente. desafectada, a tomar chá com sanduíches de atum e quadrados de chocolate. e a devolver milagres inúteis às nuvens que tos choveram.
e então vestes-te de partida. à saída, paras à porta e dizes:
um dia seremos vinho.

um dia longínquo. um dia incerto. e vulgar talvez.

seremos sim, digo eu,
de fragrância sublime e origem descontrolada.

sangue silvestre.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Um dia maior

à tua espera vi passar memórias em escadas rolantes,
a caminho das nuvens. ouvi o uivo do tempo, ébrio de espanto.
saboreei a cinza da juventude e o sal das vagas da vida.
em silêncio.

nasceste poema à espera de ser dito. mas eu não soube dizer-te.
procurei a emoção certa e as palavras, até decifrar a tua imagem nos meus sonhos.
e abracei-lhe a forma.
carne nenhuma. nem ossos. nem olhos.
não eras então mais que uma promessa.
e esse abraço fez-se verso na minha pele.

à tua espera senti o peso das escolhas no peito e o passado a estalar-me nas veias.
e li o sentido do mundo.
e acreditei num dia maior.

e a fé fez-se amor quando chegaste.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Fondue

as mãos de deus percorreram o teu corpo, deitaram-se sobre o teu ventre, pressionaram a tua anca, arredondaram-se nos teus seios. e eu vi-te a rasgar o céu em voo picado.
para onde ias não sei. mas o teu gozo era imenso, escancarado na tua boca de riso, montado no teu rosto antes imperturbável, sobreposto em cores garridas à tua agreste e fecunda razão.

estacaste quando os nossos olhos se encontraram.
e, recortada no azul, flutuaste por momentos a revolver os bolsos, como se procurasses trocos para o parquímetro.
até que me estendeste um garfo e disseste:
mergulha a fruta no chocolate e abre-te ao amor com subtileza.
a minha vaidade não deixa, disse eu.
então o espelho partiu-se e dos estilhaços fiz um diário.
abraçada ao vazio na solidão ventosa do alpendre, caminhei, pulei e corri, de nervos latejantes e coração em fúria.
depois comi a fruta e lambi o chocolate, enquanto a brisa te segurava ao éter.
e no instante em que de novo ascendeste,
apaixonei-me por ti.

dias depois as mãos de deus percorreram o meu corpo, deitaram-se sobre o meu ventre, pressionaram a minha anca, arredondaram-se nos meus seios. e eu arranquei as plumas, embrulhei os brilhos, arrumei a peruca, desfiz-me dos acessórios e da maquilhagem.

hoje esculpi em sangue uma cópia do garfo que me deste.
servi o vinho, acendi a lamparina, sosseguei o coração.
e sentei-me à tua espera.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Quero sair

arrasto mulheres pelos cabelos.
disponho-as clinicamente com mãos de lacaio e afago-as por vezes por momentos, medindo-lhes a pele e confirmando-lhes os sem-sentidos.
estão ali, só ali, interligadas de fios sem rosto.
frias
objectivas
unas.
como eu não.

(neste triste soalho humano, de pernas cruzadas sob a mesa baixa oriental, um dia levaste-me sushi à boca.
lembro-me ainda da textura do rolo a desfazer-se na minha língua.
como ontem tu.)

esta realidade é um carrossel subterrâneo, digo,
pára-o, por favor, quero sair.

descrevo-me em fósforos frágeis
e uso alfinetes para acender os cigarros
(não sei como ardem as chamas neles
mas a verdade é que consigo fazê-las arder sempre. e ficam a tremeluzir na penumbra vazia da sala enquanto leio a ininteligível stein.)

engasgo-me num grão de arroz e tento refazer-me ao som do night dominator. o ritmo empurra-me contra o pavimento,
puxa-me para o tecto,
açoita-me de vermes e beijos
quentes
subjectivos
múltiplos.
como eu sim.

sei que não há embate sem senão
nem firmeza eterna
ou guerras bonitas.
e que as mulheres no soalho vão perdurar.
como nós não.

no fim de tudo restará a frivolidade dos momentos festivos.
e os meus filhos recordarão as minhas mentiras ou o meu amor.
(o que mais poderoso for, o que mais força tiver, o que mais genuíno lhes parecer.)
e hão-de pisar as minhas mulheres sem que o saibam. e pregar quadros babilónicos nas paredes, em homenagem à arte que não me salvou.
a que horas vens?
quando exactamente tencionas matar-me?
terei tempo para mais um cigarro?
(acendo um alfinete.)

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Fuligem

aquele olhar transbordava de fuligem.
há anos que a nau dos destinos fáceis passava lá os seus verões. também havia uma névoa, uma espécie de véu intrincado, transparente e ao mesmo tempo lavrado, entrançado talvez, como a mousse das collants.
não era um olhar louco. não era um olhar frio. nem um olhar aéreo. não era um olhar lesto nem lento. quanto a velocidade, nada mais do que normal. até no pestanejar.
mas transbordava de fuligem. pulverizava o quarto de um pó muito fino e escuro, que custava a sair.
e, ainda assim, lutava.
havia uma minúscula parcela indómita que lutava.
às vezes reverberava e agitava-se como um desenfreado comboio pensante, um circo completo de carruagens sobrelotadas, qual brinquedo burguês, por milagre encafuado
(nem mais um pixel lá caberia) num ínfimo e íntimo compartimento concreto de cada um dos olhos.

eram olhos que falavam e ouviam.
mas cegos como vidro. como as palavras.

um dia, o olhar disse:
devia ter sido mais leve, devia ter sido mais longo. ou belo.
e escutou: a corda que amarra é a mesma que rompe.
então o olhar fechou-se com as suas chagas e contradições.
carregava fuligem, como se nunca tivesse sido usado.
mas podia ainda atravessar o inverno e desejar o amor.
podia refazer-se. ou parar de lutar.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Mãos dadas

dadas vão as nossas mãos para todos os lados,
entregam-se aos efeitos do arco-íris
e atravessam florestas silenciosas
e cidades com ruas forradas a sopros de saxofone.
às vezes abrem-se para agarrar,
mas também se fecham
(como olhos
para dormir.

e não mentem.

dadas vão as nossas mãos para casa
e deitam-se
uma na outra, uma com a outra, uma sobre a outra, ou dentro
(como nós
vão para casa recolhidas nas conchas de si mesmas
e então renascem,
saem para a luz,
esticam-se como quem se espreguiça
voam como se planassem
e escorregam nos declives das nossas peles.

dadas vão as nossas mãos pelo mundo
e falam
(mansas delicadas
de amor.

dadas vão as nossas mãos
ao encontro da morte
agora ainda menina
de rosa vestida
ao nosso colo.
e enquanto dadas vão as nossas mãos
quase conseguimos ignorá-la

e dançar.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Até na lama

trazia ervas daninhas nos dentes, caminhava na lama e ouvia repetidamente os soluços do mundo
(toda a vastidão do planeta é feita de carne humana que chora,
disso já eu sabia há muito

mas, naquele dia em que não nevou vermelho nem choveu púrpura, foi quando escutei pela primeira vez o teu silvestre pranto de pólen, misturado nos húmidos uivos globais.

a percepção desse instante mudou-me por dentro
(como deves recordar-te, passei a andar com colares de violetas ao pescoço e dentes-de-leão nos olhos a desfolhar-se lentamente em brancas lágrimas voadoras.
e passou a ser-me possível amar todas as coisas e vê-las crescer e tocar-lhes e senti-las como manifestações de ti
e desse teu fecundo efeito floral em mim.

hoje, quando choras, oiço cordas de veludo
(tecido em pétalas de rosa,
dedilhadas como harpas.
e às vezes flautas de espuma atlântica
a soprar nos lábios azuis do vento
e toda a beleza toda a ventura toda a magia toda a cor
toda a fragrância do mundo
(até na lama.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Chove de novo

se te dou palavras, queres receber beijos.
se te ofereço chocolates, queres recolher gestos.
se te entrego a alma, preferes flores.
se te deixo, queres que fique. se te quero, preferes que parta.

lá fora chove de novo
e o tempo descai para as margens do silêncio.
não sei já como dizer-te o que tagarela dentro de mim
(perdi os fios dos versos e os motores dos verbos,
lá onde o teu corpo a cintilar se abriu em remoinho ao meu desejo
e cedeu ao ímpeto da carne, sem ternura nem canções.

tenho poemas a perfurar-me os ossos
e a crescer como árvores na cabeça.
e saudades a enlaçar-me com ramos de cinza,
tão frágeis como os teus braços
(e mais fortes que o amor que me tens nos dias em que para o amor te reinventas, escultura de feltro e sal, arte sem humanidade nenhuma, cidade escarlate e surreal.

lá fora chove de novo
e eu dissolvo-me na espuma dos canais,
a caminho da estéril água da incompreensão
(e o que não compreendo atropela-me a língua,
fecha-me ao mundo e afasta-me de ti.

um dia o mar engolirá a praia e depois será tarde demais
(tarde demais para preguiçar nas tardes e perseguir pombas,
para trocar olhares eloquentes, para rir e conversar.

lá fora chove de novo.
eu visto-me de perguntas e olho para os sonhos
(onde tu és só um instante
a tentar demorar-se no avesso da minha pele.
ao contrário.
sem como nem porquê.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Dos rios

quando levantas o vento, há chamas que me abraçam.
sinto-as queimar-me por dentro e envidraço-me por instinto.
olho para fora e vejo tudo. mas nada me fere senão o teu sopro de dúvidas e pele rasgada.
sei que desejavas o tempo desmedido e o lugar da comunhão e o enlevo da fé, que querias o amor perpétuo em perpétuo movimento, mas perpetuamente nas tuas mãos, como coisa palpável que não é.
e que, como a todas as pessoas do mundo, devia bastar-te existires para mereceres todas as realizações, a todo o momento renovadas e em alegre construção.
mas não sabes como.

quando levantas o vento e despejas as coisas da alma no chão, o meu nome desenha-se na tua boca e eu permaneço na camada de transparência das altas temperaturas, a hesitar nos passos, nas lágrimas e nos gritos.
reparo que conheces as cores da loucura e os prazeres da cor, vermelhos e azuis e amarelos em fusão solarenga, como os nossos corpos nas noites que murmuram.
e noto que por vezes consegues ouvir o inaudível, até o meu sangue a inchar nas veias e as veias a doer-me e os meus lábios a acordar.
mas não consegues fixar-te. atormenta-te o que perdes entretanto, tanta e tanta vida em ilusória leveza cósmica, éter de original inconsequência e em inconstante devir, sintonizado com a poeira das órbitas e o hálito das galáxias, frágeis e mutáveis como os nossos corações sedentos de atenção.
a constância é erro, dizes.
e eu digo: esqueces o progresso dos rios.
o que convém ao universo, entre correntes e convulsões e desalinhos, é um eterno retorno que avance, mais do que o acaso das estrelas desgarradas das constelações.

não há uma maneira correcta de dar nem uma medida certa para o amor. nem flores que não murchem, nem terra que não renasça.
toda a natureza tem destino.
e tu não sabes para onde vais.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Venho ao teu rosto

venho ao teu rosto depor as máscaras.
entro na casa e oiço o soluçar do estuque e as curvas da brisa a esvoaçar entre as janelas. nunca percebeste a diferença entre arejamento e corrente de ar. e hoje venho ao teu rosto para um sopro final.
(e sim, trago um agasalho.
recuso-me a que me adoeças uma última vez.

reparo que na cómoda continua a reluzir o batman, abraçado a ti num retrato a preto e branco. foi teu colega de escola e é famoso. por isso eu nunca consegui concorrer com ele. mas hoje venho ao teu rosto e aproveito para te confessar que sempre odiei essa fotografia
(quase tanto como atum.

no cinzeiro da tralha, jazem os botões de punho que um dia usaste por capricho, misturados com moedas e pilhas e clips e rebuçados para a tosse e até um bocado da tampa de um bule de loiça boa, prenda do tio joão, aquele do bigode revirado que, hoje que venho ao teu rosto, admito ter-me assediado certa tarde no museu
(de pau feito nas mãos e dente de ouro à espreita.

hoje venho ao teu rosto depor as máscaras.
mais nada, não demoro.
sacudo apenas as migalhas do pequeno-almoço e passo a esfregona no chão da cozinha.
e no teu rosto deponho as máscaras.

faz delas o que entenderes, livra-te delas se quiseres
(já não são eu.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Aos pedaços

vivia como um insecto mortífero à míngua de redenção, com o sangue dos fracos a escorrer-me da boca, as antenas em alerta, as palmas das mãos coladas de gula.
o destino não era mais que uma silhueta macilenta, recortada a tesoura romba sobre o negro da noite. e eu não podia entender o amor senão quando o esmagava entre os dedos e o juntava às bagas do desejo no gigantesco almofariz das sensações.

até que chegaste e me afagaste as asas, há séculos amachucadas sob o peso do tempo. alisaste-as com cuidado, sorriste-me, beijaste-me. e finalmente ajustaste-te ao meu abraço, como se pudesses ficar.
mas aos poucos toda tu te fragmentaste.
e aos pedaços dormiste comigo, aos pedaços me levaste em viagem, aos pedaços ofereceste-me sonhos luminosos, aos pedaços foste só para mim.
quando reparaste em ti mesma, despedaçada como montanha vergada à erosão, tinhas já perdido metade dos fragmentos em lugares que nem sequer conseguias recordar.

e então disseste: ajuda-me a ser inteira.
e eu disse: vou a caminho.
acordei na penumbra, abrindo os olhos lentamente, até os habituar à luz. depois bebi um trago de veneno arco-íris e pincelei a alma de cores temporárias, por um momento minhas.
o elixir da esperança continuou a reluzir no cimo da cómoda, mas ignorei-o. afinal, sempre preferiste a efémera máscara da alegria, o prazer que morre, como gente ou terra, de desgaste.

saí da pele, engoli o mundo e entrei em ti.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Uma romã

quando o meu pensamento a si mesmo se pensa, a nossa história é-lhe estrangeira como uma romã a apodrecer num quadro surrealista.

há areia movediça nestes degraus que subimos, misturada com o amor, essa metáfora de fogo e vento, que às vezes é apenas um quarto vazio onde deitamos as rugas para descansar.
há geada febril nesta casa que enchemos, misturada com o amor, essa fragrância teimosa, que nos pesa como um bolso carregado de pedras.

duas bocas coladas não são amor.
lamberes-me como a um gelado não é amor.
tocares-me para que estremeça não é amor.
teres-me na cama não é amor.

antes ouvisses os meus silêncios a ribombar como trovões entre paredes de carne.

o que eu sou está na minha pele e sob os meus cabelos e a pulsar no meu peito. o que tu és encontra-se espalhado pelo mundo, na companhia dos outros, em estilhaços insignificantes que tu não queres unificar e eu não posso recolher.

há areia movediça nesta ampulheta onde o nosso tempo se esvai.
e vagas gigantes de nada no teu mar.
engolem-te a voz, despem-te o sentido, desfazem-te em nortada.

há uma geada febril nesta romã que habitamos.
e nos meus olhos, lágrimas que não sabes ler.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Vulcano

conta a lenda que vulcano era coxo. dominava o fogo e esculpia em ferro as faíscas todo-poderosas do seu pai e as armas guerreiras de outros deuses, os seus predilectos do olimpo. artista incompreendido, como todos, irava-se com pouco e vivia consumido pelo ciúme, desejoso de reconhecimento mas frustrado pela indiferença, tanto a celeste como a terrena. a sua deformidade física envergonhava a mãe, juno, que nela via a personificação dos seus erros, e o pai, júpiter, incapaz de entender a imperfeição.
expulso do céu e repudiado por todos os que amava, vulcano procurou consolo na sua arte e energia nas memórias da infância. em vão: o seu coração estava tão corrompido como o seu corpo e demovia-o de qualquer acção generosa. tratava mal a mulher, a bela vénus, por todos os deuses e semi-deuses e homens desejada, porque nunca acreditou na sua fidelidade, muito menos no seu amor incondicional, tão habituado estava a ser traído. e com as suas constantes desconfianças, acabou por empurrá-la para os braços do próprio irmão.
assim pôde reduzir todos os seres às suas perversões, só para elevar-se a si mesmo como o mais virtuoso, puro e belo do universo, apesar da fealdade exterior.
porém, não conseguiu alcançar os seus intentos: os seus motivos nunca foram os mais nobres, a sua arrogante vaidade sempre se sobrepôs aos bons sentimentos.
afinal, ele nunca fora melhor do que os outros, apenas diferente. como eu.
vulcano era coxo.
mas podia ter sido amado. bastava-lhe saber amar de volta.
mas ninguém soube ensinar-lhe como, ninguém soube indicar-lhe o caminho e mostrar-lhe que esse caminho seria mais valioso que a sua arte. que cada passo seu, mesmo manco, trémulo, incerto, dado em sintonia com outro coração, poderia de facto conduzi-lo à felicidade.
como acredito que os meus passos me conduzirão a ela.
se tu souberes guiar-me e eu souber levar-me pela tua mão.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Permanência

misturaste os pés na água e a cabeça no coração. o mar mostrou-te a eterna agitação do universo e a fragilidade do tempo. a brisa aderiu aos teus cabelos, desenhando-lhes um brilho estival.
e o sol demorou-se na tua pele, o suficiente para te sentires fervilhante como o lume dos olhos das raparigas à conquista dos outros e de si mesmas.
sorriste-me.
e eu sacudi a toalha e o medo para dentro da praia e sorri-te de volta, de rosto mergulhado no teu, a ouvir a tarde a passar num burburinho quase musical.

e nesse instante soube-te minha, como se fosse possível ter alguém. delírio apenas. mas dos que aconchegam a alma.

então
a ranger os dentes e de esperança apertada nos punhos, enfrentei os meus fantasmas. um a um, até só lhes sobrar aquele vago cheiro a mofo de coisa abandonada.

tu fervilhavas ainda quando te revelei os meus segredos.
mas já não sorrias.
nua e inexpressiva na esteira que debroava a duna, de lírio pintado no peito e névoa mística no olhar, viste-me depor as máscaras e virar todas as mentiras do avesso e as dúvidas de pernas para o ar.

do que fui só restou um sonho pulsante e uma cicatriz escarlate.
paro aqui, disse.
e tu, consumida nas chamas da permanência, disseste:
fico em ti.
e no meu corpo te alojaste.
até agora.
mas às vezes sinto que foges em busca de outro fogo. escorregas para o mundo como a areia entre os meus dedos e voas, tornada vento nas janelas entreabertas dos meus dias.

sempre que uma verdade se extingue, há outra que se acende.
e só arde enquanto é nova.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Momento

escuto o resfolegar das asas dos anjos, que nos resguardam dos ímpetos da terra, e viajo nas tuas costas.
as minhas mãos desenham histórias de amor e nuvens frescas entre os teus ombros, passeiam no arco da tua espinha, na volúpia que respira pelos teus poros, na humana voz que se esconde na constelação de sinais sobre a qual te deitas quando me procuras a boca com a boca e os olhos com os olhos.
e perco-me nas sensações enquanto a noite morre lentamente contra as janelas e a brisa atlântica se encolhe aos teus pés, enroscada no pêlo do gato.

lá fora, a lua aponta setas de luz aos telhados e às folhas das árvores que murmuram esperança em palavras que só nós entendemos.
no quarto, os anjos tropeçam no vapor palpável da nossa respiração.
e tu embrulhas-te em mim e eu em ti.
e misturamos pele e saliva.
e disparamos rajadas de beijos e granadas de desejo.
acerta-me, dizes.
desconcerta-me, digo eu.
e obedeço-te. e encontro-te. e desmancho-me nos teus braços.
e envelheço devagar sem que o tempo me adoeça.

e amo-te como se não existisse mais nada.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Facto

volatilizo-me para soprar o teu nome, condenso-me para deslizar no teu corpo.
e sou a bruma. e um fio de suor.
tu abres o rosto de espanto e as mãos de ternura, és a trepadeira que abraça a minha casa e lhe come a cal às paredes e lhe rouba o sol das janelas.
e és a boca que não deixa os meus beijos partir.
aceita o silêncio, digo.
a matéria triunfa, dizes tu.
e o teu espírito cola-se ao espelho como humanamente a pele adere à carne. músculos e gordura e ossos e canais, a feliz fusão dos teus sentidos.

depois bebes um copo de água e fumas um cigarro.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

De aço

gosto de cordas como tu gostas de chocolate.
e de pessoas sensuais, eu e tu, mais as suas vozes imparáveis e olhos inquietos e pernas trémulas e mãos embrulhadas.
às vezes escutamos pianos e tambores nas nossas cabeças e pensamos nelas, em como os seus passos traçam caminhos no mundo, em como cada fugaz alegria lhes sabe a leite e cacau e as ata à vida em nós gordos, próprios de amarras navegantes, porém estéreis vezes demais.
pensamos nelas e trocamos sorrisos, eu e tu, desejando que todas elas sejam tão felizes como nós, nem que seja por um dia. mas os seus rostos franzidos de azul expõem o tédio que as tolhe, o desalento que as imobiliza, a raiva que as desvia da luz.
invejam-nos, digo.
este amor ofusca, dizes tu.
e as nossas bocas ajustam-se uma à outra, tornadas beijos palpáveis em minutos que derretem como cera de vela.
e sacudimos o corpo como se fosse roupa. e amontoamos a roupa como se pudéssemos subir por ela até às nuvens.
e enfeitamos o estendal com papel colorido.
e colorimos a pele, devorando o sol.
como se o sol nos pertencesse.

à nossa volta forma-se então uma circunferência de aço, desenhada a cordas curvas de guitarra. e lá dentro insinua-se uma língua de chocolate, que eu e tu descodificamos, sem gramática nem receituário.

em breve poderemos ensiná-la.
a quem tiver tempo para sonhar.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Titânia

as noites perdidas no bosque, a beber e a brindar e a reluzir e a brincar às escondidas com oberon e os seus acólitos, colaram-se às tuas asas, descolorindo-as com o perfume orvalhado das horas escuras. e em mim depositaste o vaporoso tecido matizado que noutro tempo usaste para voar.
assim passou a ser-te mais fácil encontrar-me e para mim impossível adivinhar-te, apesar do colar de estrelas que desde sempre te adornou o pescoço e dos vestígios de suspiros que há muito se embrulharam nos teus cabelos.
estranhei.
nos meus sonhos ainda tocavas harpa com hábeis dedos brancos e inundavas de luz o caos do arvoredo. ainda tremias de lascívia ao crepúsculo e reinventavas os teus feitiços uma vez ao dia para me garantires uma surpresa por manhã.
mas na verdade oberon tinha já saqueado a tua beleza celeste e guardado para si os teus poderes. aprendeu a ler-te e seduziu-te, ordenando os teus ardis como planetas em eterna órbita em torno de magias já gastas.
só assim poderia ter-te.
mas tu, rainha das fadas e no cosmos decifrado pelos mortais a mais brilhante lua de urano, eras minha demais para permaneceres acesa nos braços dele.
e um dia vieste ao meu encontro, sem que eu já te esperasse.
lenta e discretamente, sem que eu pudesse sentir-te aproximar.
e disseste: dou-te as minhas cores.
serei o teu satélite, disse eu.
e fiquei a rodopiar na tua pele de puro sol.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Na fé

sempre que o céu se enfurece, o lento edifício do nosso amor entorta-se como plasticina. o meu coração contorce-se na sua pequena caixa almofadada e o teu encolhe-se até se perder na escuridão molhada do teu interior.
mas há janelas teimosas que se abrem para a luz e se fecham à ira. janelas como cristais flamejantes que nos agarram pelos colarinhos, nos viram para dentro e nos desviam da tentação de saltar.
a paisagem lá fora é de cinza, dizes.
e eu digo: a cor está na tuas mãos.
então pintamos de novo as paredes e revestimos a cama de lume brando. consertamos os degraus do sótão e bebemos a água turva do tecto nublado.
e plantamos os pés nos vasos. e acendemos velas no sangue. e podamos os ramos da cabeça.
e acariciamos a fé para que não nos falhe, agasalhada em palavras de pele e soluços de sol e gestos de paz límpida e silêncio sábio.
até beijarmos as faces leitosas da lua e adormecermos de braços e sonhos entrelaçados.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Inconsequente

passeavas nua pelas tardes de areia
acreditando que flutuavas.
um rumor de praia molhava as conchas, firmes testemunhas do teu desfile solar. uma brisa afagava a cor dos teus pensamentos, que calavas por vergonha da sua insidiosa fragilidade. e um gesto de mar amplificava-te os ombros e projectava a tua sombra nas dunas redondas onde eu me sentava a edificar palácios de paus e pedras e jardins desertos.
eras como um barco luminescente a lamber as vagas, uma ilha aérea a abraçar a terra, um sopro líquido no âmago das nuvens litorais. e eu tentava prender a vista ao horizonte e os dedos precisos às minhas construções.
em vão.
nos meus ouvidos soava indelével o choro sensual do tango. o fole do bandóneon retesava os meus sentidos e imobilizava-me o corpo incompleto, antes ondulante e sedento e tão incoerente como as marés vivas de setembro.
eu permanecia nas aleivosas e brancas dunas, de mãos obreiras e olhos gulosos, sonhando em silêncio o instante das nossas bocas ajustadas, das nossas peles fundidas, da nossa respiração misturada.
mas só as escarpas me entendiam.
o sol descia lânguido pelas rochas pisadas e segredava-me verdades quase críveis.
amanhã serias para mim e eu poderia levantar-me e caminhar.

passeavas nua pelas tardes de areia
e às vezes acenavas-me de longe.
um dia paraste ao alcance da minha arquitectura de pináculos e quadrilóbulos, nichos, dosséis e orlas ornamentadas, círculos concêntricos e arcos geminados ogivais.
havia espanto e desdém no teu rosto, mas também ternura a infiltrar-se suavemente nas tuas rugas de expressão.
disseste: quando terminares, passeio contigo.
e eu disse: não há prazer consequente.
ergui-me e abalroei o meu monumento inacabado.
estava pronta.
nunca gostei de inaugurações.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Espelho

arrumo um novelo de beijos na primeira gaveta da cómoda e ligo o espelho da nostalgia.
no reflexo vejo a luz da juventude apagar-se e as cores da vida a vibrar como as cordas da guitarra que em tempos tocámos, madrugada dentro na praia dos segredos, viradas para o lume acidental que à noite ateávamos, entre o primeiro king e o último whisky dançante.
de almas incertas junto à fogueira, lembro-me, nunca os nossos corações se queimaram como depois aconteceu, quando a lua parou de sorrir no meu sorriso e as ondas deixaram de fervilhar nos teus olhos.
de rostos batidos pela nortada, mãos acesas e pés sujos de alcatrão, éramos tão lisas e pueris como as nossas peles selvagens, macilentas como convinha, não andássemos nós a devorar os tormentos de crescer sem aceitar a vacuidade dos sonhos.
e era para os sonhos que então vivíamos.
as minhas fantasias, recordo, eram tão sólidas como as rochas rasteiras do lajedo e o meu desconhecimento do mundo proporcional à minha sede. viajava no teu corpo e amava-te em inquieta angústia, como se soubesse desde sempre que jamais poderias ser o que em ti projectava.
e tu eras a face do desejo sem o desejares, a sonhar com profiteroles, abstracções expressionistas e sapatinhos de lã.
um dia disseste: não sou tua, pertenço à ilha.
e eu disse: sou um náufrago à deriva.
então compreendemos para onde íamos e abrimo-nos ao real, de espíritos tombados sobre a areia branca, misturados no declive das dunas e no uivo dos cactos.
e avançámos paralelas pela beira-mar.
no espelho da nostalgia reparo numa ruga funda que me inclina a boca para o centro da terra. lateja o teu nome, mas já não me incomoda.
abraço-me lentamente e desligo o espelho.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Pensamento II

quando o amor tropeça é o nosso coração que cai.
quando o amor tropeça não podemos voltar-lhe as costas.
quando o amor tropeça numa pedra do real
devemos ajudá-lo a reerguer-se com as mãos do sonho.
e pregá-lo ao peito.
e exibi-lo com sorrisos nos olhos pelos dias dentro.
como se nunca tivesse tropeçado.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Avanço

por ti correm os rios, em ti crescem as matas, para ti cantam os pássaros. toda tu és natureza em voluptuosa vibração, o veludo de pétalas das flores, a seda nevrálgica das folhas, as escamas prateadas dos peixes, a frescura marítima da tarde, o brilho solar que incandesce as manhãs, as estrelas penduradas no céu nocturno, os flutuantes frutos nas copas das árvores.
e enches de graça o meu mundo. dás-me a razão do riso e o lenço de apagar lágrimas. ofereces-me colheres de chocolate e o sal que me tempera cada momento. amplias-me as cores e as formas da alegria e mostras-me os rebuçados que um dia guardaste sob a pele, tal como a terra guarda as raízes sob a sua crosta e o mar guarda segredos nas suas canções de água, transparentes e inefáveis e líquidas e puramente instrumentais.
contigo avanço como se soubesse para onde me dirijo.
não sigo correntes, declino amarras, nego marés. e vou decidida, de leme em punho e punhal à cintura por precaução, como se conseguisse vislumbrar a meta à minha frente, como se pudesse antever o destino de linhas curvas, como as guitarras e as mulheres e os barcos, que há-de ser o meu futuro.
mas em verdade te digo que o desconheço.
como adivinhá-lo se nenhum horizonte é permanente? como sabê-lo se tudo o que vive também morre? como antecipá-lo se nada se queda ou cala na irremediável progressão das horas? como imaginá-lo, enfim, se a realidade está colada ao tempo que passa e fora do tempo não passa de sonho?
mas avanço convictamente.
contigo e sem mapa, contigo e atenta. abraçada ao teu corpo, volúvel como todo o ser, mutável como o universo.
mas mais meu.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Certeza

há verdura neste caminho.
por mais que o negues, por mais que vejas o asfalto avançar sob a curva dos teus pés e a cinza erguer-se no ar que te envolve, posso assegurar-te que este chão continua fértil.
olha a cascata, como sempre majestosa, na sua cadência de montanha. olha o rio, para sempre navegável, no sossego da sua própria corrente. olha a árvore, imponente como nunca, no seu imparável progresso rumo ao céu. olha a folhagem, cada vez mais luxuriante, nas margens de tudo o que rola, como ainda ontem rolaram os meus olhos sobre o teu corpo, até se quedarem embriagados no diâmetro do teu pulso.
olha. e em lúcida consciência diz-me o que vês para além desse negrume que te abraça. espreita através da bruma e enfrenta os fantasmas, rasga a escuridão e esmurra o medo.
do outro lado da noite estarei eu, à espera da tua história. fecunda como o caminho, estóica no fim de todos os trilhos que te parecem terminar no vazio.
poderei finalmente escutar-te e fundir a vida que te respira pelos poros com a verdura perene do mundo. num abraço solarengo, com dentes de sorrir e mãos de colar.

a aridez reside apenas no teu coração. quase consigo ouvi-lo, enfermo na febre de sonhar-se em pleno e irrigado de luz.
sei que ainda há esperança para ele.
não o deixes morrer.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Desarmonia

no tempo em que coleccionava harmonias, havia folhas de hera a encaracolar-se no alvo edifício que era o teu corpo.
num sopro litoral aceleravas, como a canção do zorba.
dançavas aos pulos, a galope no charme, de echarpe lunar encaixada entre os ombros.
e atiravas copos à fogueira em nome dos prazeres da noite, com beijos calados na língua, sem língua que falar.
eu coleccionava harmonias.
trancava-as em sorrisos ordeiros, comprimidas sob compassos binários e estéreis ilusões estéticas.
nada de notas dissonantes, nada de sons imprevistos.
refrões demais. e nenhuma redenção.
até que te imobilizaste, sem intenção definida senão o caminho que a mim levaria.
e desarmaste as minhas épicas harmonias.
desarrumaste a colecção que há dezenas de anos eu ordenava.
e ofereceste-me ao caos, ao colorido caos teu a que hoje pertenço, sempre em trânsito como o universo.
a vida é uma eternidade descontínua, disseste.
e moldaste a minha nova casa a fibra e magma, em linhas curvas e traços navegantes. pintaste-a de suspiros quentes, em tintas metamórficas com a espessura do desejo. decoraste-a com estilhaços de música e acordes marítimos, numa arquitectura tão simples como as árvores, com alicerces de chocolate e a textura dos sonhos.
eu entrei nela vestida de nada, como se entrasse num círculo mágico de anões gigantes e plumas trágicas, destinada ao êxtase de um aplauso interior.
e disse: não há trapézios seguros.
só então voei. envolta no teu abraço e sem sair da marquise. transparente como os vidros que a enformavam.
firme como as suas vigas. plena como o espaço dentro.
e indefesa.
mas finalmente preparada para cair.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Súplica

arranca-me os olhos para que possa descansar.
só esta noite. e por um instante tão breve como uma amiba.
não sei se resistirei muito tempo sem eles.
mas preciso que os subtraias ao meu rosto e os laves. à torneira, mergulhados no guarda-jóias de limoges ou na concha das tuas mãos sob a chuva. fica ao teu critério. mas não posso esperar nem mais uma hora.
peço-te, em exausta prostração.
se consegues ouvir-me, escova-lhes toda a lava e horror,
retira-lhes o medo, a morte, a dureza mineral.
e deixa ficar apenas o que vive.
as flores. o galope dos corações. o brilho celeste.
e o barulho do mar.

terça-feira, 25 de março de 2008

Fora do tempo

respondo ao negro da noite do mundo com um manto de luz tricotado com os fios da tua pele.
e nas minhas mãos, sem como nem porquê, renova-se o calor.
como vês, há lume neste magma incolor que cobre a minha humana interioridade, matéria de vida que há-de pulsar até apodrecer e se tornar densamente imaterial.
caio. e da queda faço um passo de dança.
para aterrar nos teus braços.
tremo. e do frémito retiro um gesto de amor.
para agitar o teu corpo.
suspiro. e da interjeição crio um mapa de desejo.
para me conduzir ao teu âmago.
e então todo o meu ser se acende e se inunda de ti.
um entusiasmo infantil impele-me a trepar às árvores para morder maçãs. e a pular entre ramos como num trapézio, sem rede nem medo.
e a escorregar pela verdura, subitamente criança de novo
e fora do tempo a rebolar na relva, no riso e na esperança.
renasço, digo.
continuas-me, dizes tu.
e eu enlaço-te com o teu nome preso à garganta. e derreto contigo em fragmentos líquidos, tão imensa como o universo. cintilando nas tuas unhas, no teu dorso, nos teus joelhos. em mil pedaços afluindo ao teu sangue e aos teus poros. respirando pureza pela primeira vez. em cada recanto teu, em cada terminação nervosa, em cada articulação, em cada um dos teus ossos, cartilagens, células, sinapses e filamentos.
melhor espalhada todas as manhãs.
e maior.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Razão nenhuma

as cicatrizes que me vestem carregam o tempo em que não existias, o tempo das asas de dinossauro nas noites suplicantes e dos fantasmas vulneráveis nas casas vazias, onde me fiz e refiz em fibra de vidro e monumentos de papel até reparar que a juventude é um pássaro a jacto.
poro a poro, em permanente desgaste e total consciência me construí. e espero avançar na obra, com a tua ajuda e mais uma ou outra frivolidade, sem ter de armazenar o espanto que a cada manhã o mundo me provoca.
resumo-me ao tacto quando te aperto a mão.
mas sinto que nessa acção simples se espalmam todos os meus gestos, os que parecem heróicos e os que exalam cobardia, os que merecem um sorriso e os que deviam morrer.
e absorvo-te o rosto e a medida certa dos sonhos, quase todos tão incertos como uma nortada de setembro, uma cascata de beijos ou um trilho pedestre numa montanha em lenta mas imparável mutação.
só então percebo que temes o que desejas porque sabes o que não queres. e consideras apaziguar-me com uma revolução de pureza que cale a minha prudente impudência e resolva a contradição em carne e osso e cabelos que sou.
a vida ocupa-te demais, dizes.
o meu corpo fala por mim, digo eu.
e encolho-me entre palavras perdidas, aos pés da cama. caminho sem me mover e danço dentro do que penso, procurando mais um golpe de sofrimento que me inspire um verso.
sei que não conheço a moderação, que em mim até a ternura é voraz, que em mim o gelo arde e os arbustos crescem e crescem até se tornarem sequóias. que em mim as manifestações divinas se desvalorizam na matéria da poesia e as gotas de suor formam sulcos na pele, abrindo-se em cursos de água de múltiplas direcções, sem nascente nem foz.
mas sei também que este amor é um glorioso templo, uma tarde de morangos crocantes, uma dentada no calendário, um desenho a carvão, com abraços recortados na luz, oníricos e amantes de si mesmos.
e razão nenhuma. só inefáveis altares onde ajoelhar.

quinta-feira, 6 de março de 2008

As ondas

vejo duas ondas breves nos teus olhos, enroladas nesse remoinho bucólico, todo outonal, que de matizes quentes os pinta. vejo-as embrulhar-se em si mesmas e bater nesse branco de espuma raiado de sangue onde a cor se deita. e vejo-as recolher-se a um recanto de águas nupciais, onde todos os elementos finalmente se reúnem e dançam valsas de pés nus.
e o que vejo fala comigo em graça subtil, como o cheiro a chuva e a maresia no cabelo.
irmãs do pranto e da alegria, gota a gota, as ondas inundam céu e terra e escondem-se no mar. lambem os alvos areais e as pedras negras com a mesma desenvoltura. são cadência e surpresa, vertigem e silêncio, verde esmeralda, azul índigo, turquesa, cobalto, transparência.
ansiosas vêm e em saudade partem. como gente.
chegam novas para se esfumarem cansadas, quase adultas. mas volvem sempre, retornadas meninas, além de imensas.
lentas e rápidas e sempre sublimes. como o amor.
e entornam-se na paisagem. e beijam-me difusas. e varrem-me o corpo, brilhantes mas tão etéreas como correntes de ar atravessando abismos.
e trazem-me o teu âmago de algas em flor, a iluminar-se e a escurecer ao ritmo da minha respiração. a molhar-me a fronte e o riso. a abrir-me para o dia.
desagua no meu pulso, digo.
enxuga a minha praia, dizes tu.
e então oferecemo-nos ao oceano, trocamos de pele e flutuamos.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Construção

moro nas palavras que te invento, num edifício de paredes finas como a pele e janelas enfileiradas, viradas umas para as outras e para dentro, por onde passam vapores emaranhados, quase alcoólicos, desprovidos de gente e pardos como o mundo nas horas do crepúsculo.
há uma porta por onde ninguém sai.
e por onde tu entras em muda nudez resplandecente,
como sabes que gosto de te ter.
sob o alto pé direito da entrada, bebes leite azul mungido ao céu das tardes primaveris, encostada ao papel de parede estampado, caligrafia de desenhos morenos que em mim se tornam versos líquidos, capazes de circular na pressa das minhas veias, artérias e demais vias verbais.
mostra-me a eternidade, dizes.
aqui é a região do instante fugaz, digo eu.
e prossigo a minha construção literária, pé ante pé em tijolo miúdo de tinta e sal, nas linhas brandas da palma da mão de deus.
e mantenho-me a caminho da plenitude sem sair deste lugar de festa e reclusão, procurando a comunhão com todas as coisas num entendimento gémeo da esperança.
e continuo a deitar-me no efémero colchão desta poesia que se escreve a si mesma através dos meus dedos em chamas.

sempre é um agora repetido em termos infinitos.
espalhados na noite, como estrelas.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

No alpendre

naquela tarde solarenga, comias nêsperas excessivamente maduras com o ar grave de quem resolve os mistérios do universo. o golden retriever enroscado aos teus pés respirava profundamente, como se dormisse. e havia pólen quase visível a estremecer no ar espesso à volta dos teus cabelos.
eras a imagem pura da beleza e eu absorvia a tua presença inteira, recostada na cadeira de baloiço do alpendre. dormitava de livro aberto à frente, ocasionalmente juntando sílabas e ideias e versos na lenta passagem das horas.
às vezes cruzava as pernas e fechava os olhos. às vezes inclinava-me ligeiramente para a direita, apoiada no meu mais frágil flanco, para conseguir ver-te melhor. e às vezes pegava no copo de gin e levava-o aos lábios em silêncio.
e o mundo corria entretanto, fora de nós e do nosso tempo, aquele tempo em que já mal falávamos porque tudo era límpido e concreto e todas as palavras desnecessárias.
o amor é um direito, disseste tu entre duas nêsperas.
só então percebi o teu ar grave de quem resolve os mistérios do universo. mas limitei-me a sorrir, mordendo o pólen do éter e sentindo-o estalar na frescura do gin, rente aos dentes.
e depois fechei o livro.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Flores

acreditavas nesse magro amor que te davam, terra de calhaus e areia e espuma em infinitas formas aleatórias transbordando-te das mãos.
para pouco te servia mas sempre te parecia melhor que o léxico líquido que antes consumias insone nas noites adormecidas, para acordares o dia com mais um poema desumanizado.
vivias naquela linha muito fina, perfeitamente direita e firme, que rasga o éter e separa a luz da escuridão. uma estreitíssima faixa de chão árido onde a custo te equilibravas, olhando sempre em frente, não fossem as cores do mundo desviar-te do teu conforto sem segredos.
e cada sussurro meu te soava como um grito, cada aceno te invocava uma queda. e todos os mistérios te inconformavam, todas as volúpias te iravam.
e tudo te era gigantesco e insuportável como o inverno nas montanhas do norte. tal como me era gigantesca e insuportável, a mim, a tua distância.
então eu disse: há flores preciosas no interior do céu.
quero vê-las, disseste tu.
e por uma vez não pensaste. abriste as mãos de calhaus e areia e espuma e desceste ao meu chão quase fértil, dourado como a aurora e religiosamente pagão.
e voaste comigo numa chuva de pétalas e silêncio bom.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Agora

nos teus olhos certeza, nos teus gestos hesitação.
na tua sombra breves passos, na tua carne o longo silêncio do tempo a passar.
no teu estômago nós marinheiros, no teu coração raízes vermelhas sem terra onde crescer. na tua pele um redondo agasalho, na tua boca um vértice de razão.
na tua viagem o meu destino, no teu espelho a estrada para um sonho meu.
chegas e paras. bates à porta com os nós dos dedos, de joelhos trémulos e pose teatral, à beira da acção.
deixa-me entrar, dizes.
agora, digo eu.
à poeira táctil do nossos abraço lanço então o meu medo. calor e frio entrelaçam-se, tão íntimos como os nossos membros despidos.
e nesta cruel harmonia, que em minutos se apaga como tudo o que é perfeito, refreio-te o pensamento e vejo-o planar em redor dos meus ombros, desligado de ti mas ainda verbal, frágil como uma lágrima oculta, lírico como um tumulto justo, espreitando as palavras que não profiro.
em ti me escrevo agora na caligrafia da música. o meu poema avança sobre ti numa cicatriz operática, enredo em quatro actos ornamentado a linhas de seda e árias sem refrão.
até que o pano caia, as tuas sábias mãos hão-de inventar-me em flores resplandecentes e renascer-me em cascatas de veludo.
e quando estalar a ovação estaremos já num âmago só nosso, nem meu nem teu, uma entidade nova, tão privada e interior como a linfa e a ilusão.
e será agora. a unidade no instante concreto do amor.
ópera em filigrana.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

O embuste

tinhas os olhos sem sorriso da garbo em frente à cama, a grão e sépia, sob vidro anti-reflexo.
era para eles que te despias, de costas para mim. para eles que te deitavas e sorrias. por eles que suspiravas às esquinas da vida.
como podia eu competir com aqueles olhos imortais e sem idade? eu, toda de carne e todos os dias a caminho da morte? eu, toda sorriso virado para fora? eu, toda imperfeita e humana e em permanente mutação?
a minha existência em ti é um embuste, disse.
és o meu ser no mundo, disseste tu.
e apagaste a luz e deitaste-te ao meu lado, como todas as noites.
e tapaste-me a boca com beijos, para que me calasse. e tomaste o meu corpo como se fosse um prolongamento do teu.

no escuro, embrulhei as minhas dúvidas na tua pele.
e resumida ao tacto fui tua mais uma vez.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Neste país

antes de ouvir a tua voz, ouvi-te pensar, embebida em cândidos sorrisos e soluços difíceis.
antes de tocar as tuas mãos, senti-as nas minhas, enlaçadas pela corrente da escrita.
antes de ver os teus olhos, vi-os nos meus, num reflexo de luz branca.

já tinha visitado este país de palavras cruzadas, vibrado e definhado sob este luar que queima, neste brilho solar que assombra, com esta mesma névoa onírica a cercar-me num abraço imobilizador e a travar-me a marcha rumo ao sossego.
mas reparo que tudo nele mudou.
porque nada se repete,
nem a mais pequena sílaba sibilina,
neste país renovado a cada página,
onde nenhum coração pode ser domesticado,
onde não há dor que eduque nem alegria que liberte.

inventa-me diamantes que sangram, dizes.
não sei senão sentir, digo eu.
aqui todos os caminhos vão dar ao remanescente das nossas vidas. recomecemos do princípio.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

O jogo

quando recebo dos teus olhos o silêncio, esvazia-se a lua chorando, a justificar-te a estratégia, cúmplice fogosa do tédio que te veste de azul.
e vejo que nos teus pensamentos esvoaça a saudade do pecado, aquele febril entusiasmo de se dar ao erro e errar nos campos da sorte em vertiginosa dança.
toda sensação, tão do mundo como os peixes e as árvores.
só o prazer ébrio me derrete a neve do coração, dizes.
nenhum inverno dura sempre, digo eu.
e tu abres a voz dos teus olhos por um instante, num truque infantil que sabes que me seduz.
depois fechas-te de novo e avanças para as casas de rir e comer nuvens e agarrar chuva.

nesse jogo sei que não posso defrontar-te.
então retiro-me de cinza, para longe do teu chão.
e escrevo em espiral, como quem se deita para morrer.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

O reino

ao fundo da minha casa lacustre, a mulher.
uma cama de pipocas, mutantes como nuvens, e nada mais que um suspiro entranhado no soalho de água.
o amor nasce-me do lado errado, digo.
és o meu trono de sonho e sal, diz-me ela. e senta-se de ouvido preso ao meu peito desarrumado, desejando descortinar as minhas indecifráveis vontades num qualquer recanto arfante.
e eu,
de olhos cingidos, como fósseis na pedra, aos seus olhos,
sei-me quotidianamente em renascimento desgovernado, reinventando-me em etnias múltiplas e volúveis orientações.
toda nova a toda a hora, luto para identificar a ponta do meu próprio nariz e reconhecer as minhas feições no espelho. mas o que mais me custa é carregar o cabelo no alto da cabeça sem pensar nele, na sua inútil permeabilidade, na sua dócil imortalidade desde sempre morta, na sua impostora sensatez.
há anos que não oiço o canto das cigarras nem sinto a erva húmida sob os pés ou a plácida frescura da noite nas costas.
e coisa alguma me falta,
porque nada desejo mais que um par de horas.
nesta privada anarquia, reina a mulher.
sem poder nem submissão. sem programa de governo nem orçamento.
às vezes tudo me encanta, até o rumor da ferrugem na canalização.
e sou um povo simpático.
noutros dias tudo me é insuportável menos o mar.
e ela expatria-me com um gesto calado,
esperando que eu me renasça mais uma e outra vez.
sua súbdita indómita e plural.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Fantasia

gostava do modo como o teu corpo fremia ao meu encontro, como se todo o teu ser dançasse por te desejar. eras um exemplar puro do mais puro dos vícios, esse amor que roda a chave dos sonhos e abre fulgores etéreos no sangue.
na minha circulação, não havia margens. só um imenso caudal de sensações, atolando de gestos as minhas mãos.
e na tua coutada de mulheres fracturadas, onde por vezes me levavas de visita entre galanteios falsos e beijos mornos, lastimava as ferozes paixões do teu passado.
dizia: a tua nostalgia fere-me.
e tu dizias: as nossas horas cintilam como a aurora.
até que um dia espetaste um espinho imortal na minha coragem.
e eu desisti da realidade.
hoje, pela derradeira vez despojada de máscaras e como de costume alienada pelos meus próprios sonhos, protejo-me do sol no alto desta torre onde um dia cresceu uma árvore molhada, com raízes à porta, tronco delgado a suportar o corrimão da escada em caracol e um emaranhado de ramos, selvagens como o teu cabelo ao vento da tarde, a despontar folhas no céu riscado de cinza.
tenho ainda o teu definitivo adeus a estalar-me no peito e a saudade a martelar-me os nervos.
mas é só porque me canso de ser eu, sem ti o dia inteiro, que à noite escondo os olhos no teu retrato e me deito contigo numa seara de trigo.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

No fim

naquele outono havia riso nas almofadas e as palavras aconteciam-me como acidentes. tu eras uma felicidade vibrátil que pungia no meu espírito e eu era uma tristeza porosa que dançava sobre o teu corpo. as nuvens escondiam-se ao nosso abraço e os nossos cabelos ardiam e provocavam incêndios dentro de casa. eu atravessava os aros em chamas, como os grandes felinos amestrados no circo. e tu engolias o lume dos livros e das colheres de pau.
de madrugada a lua aninhava-se sobre o telhado para nos espiar o desejo entre as frinchas, espreguiçando-se languidamente na penumbra fria da cerâmica vermelha.
ao nascer do sol eu subia as persianas e tu dobravas os pijamas e a intimidade em gestos desenvoltos, de canto do olho no relógio e perfume no colo.
depois calçavas as botas, abrias a porta e voavas.

mas eu podia ver-te pelo dia adentro, presa às minhas pupilas, a rasgar o céu numa túnica de musgo, entre as folhas amarelas e o fumo das castanhas.
naquele outono a vida era um brinquedo novo a cada manhã e as noites não tinham recantos sombrios como os jardins barrocos.
ao fim da tarde tu chegavas-me em alegria e vestias-me de beijos.
e eu recebia-te como ao ar, numa naturalidade inteira, com todas as velhas mágoas embrulhadas numa trouxa, debaixo da cama.
oiço cânticos dentro de mim, dizias.
sou eu que em ti canto, dizia eu.
e oferecia-te mais um poema para enrolares nos braços, junto aos outros, naquela caligrafia ornamental de que te orgulhavas.
e ficavas.

e ficaste.
até gastares todos os beijos. até eu te perder nas minhas pupilas.
até entregarmos o amor ao inverno.

e a poesia acabou.