quinta-feira, 31 de julho de 2008

Aos pedaços

vivia como um insecto mortífero à míngua de redenção, com o sangue dos fracos a escorrer-me da boca, as antenas em alerta, as palmas das mãos coladas de gula.
o destino não era mais que uma silhueta macilenta, recortada a tesoura romba sobre o negro da noite. e eu não podia entender o amor senão quando o esmagava entre os dedos e o juntava às bagas do desejo no gigantesco almofariz das sensações.

até que chegaste e me afagaste as asas, há séculos amachucadas sob o peso do tempo. alisaste-as com cuidado, sorriste-me, beijaste-me. e finalmente ajustaste-te ao meu abraço, como se pudesses ficar.
mas aos poucos toda tu te fragmentaste.
e aos pedaços dormiste comigo, aos pedaços me levaste em viagem, aos pedaços ofereceste-me sonhos luminosos, aos pedaços foste só para mim.
quando reparaste em ti mesma, despedaçada como montanha vergada à erosão, tinhas já perdido metade dos fragmentos em lugares que nem sequer conseguias recordar.

e então disseste: ajuda-me a ser inteira.
e eu disse: vou a caminho.
acordei na penumbra, abrindo os olhos lentamente, até os habituar à luz. depois bebi um trago de veneno arco-íris e pincelei a alma de cores temporárias, por um momento minhas.
o elixir da esperança continuou a reluzir no cimo da cómoda, mas ignorei-o. afinal, sempre preferiste a efémera máscara da alegria, o prazer que morre, como gente ou terra, de desgaste.

saí da pele, engoli o mundo e entrei em ti.

Sem comentários: