terça-feira, 20 de novembro de 2007

Senso comum

dormes como uma ave de rapina, em alerta.
ages sem maquilhagem e mentes para ganhar o mundo.
não és o que sonhei mas és um sonho meu.
e vives comigo.
lá fora arrefece.
a chuva caminha lentamente pelas nossas madrugadas. as minhas insónias no terraço desaparecem, o teu espesso fulgor desfaz-se em espuma.
dezembro é já ali ao fundo e eu decido escrever-te.
procuro a waterman mas paro no teu quarto para rever aquela paz que de noite te sobe ao rosto e esculpe rugas doces junto às tuas têmporas.
a minha presença acorda-te mas não te demoras nos meus olhos.
neste momento à beira do inverno és só um sorriso de passagem.
e queres voltar à gruta dos sonhos.
amo-te muito, dizes.
e eu digo:
o amor não tem medida.
ou amas ou não amas. e é tudo.
mas tu já adormeceste.
sei que vais continuar a amar-me muito. até me arruinares.
preferia que me amasses por muito tempo, apesar das minhas arestas.

sábado, 17 de novembro de 2007

Por estes dias

sou uma cordilheira de nervos na tua pele, dizes.
por estes dias posso ouvir-te mas não acredito em ti.
começo a escalar-te no fundo da minha memória e no teu cume encontro-te a cortar pingos de chuva, a montar gargalhadas e a despir olhos.
depois saio para dentro de casa e deixo-te no jardim do que foste.
à lareira paro de pensar e observo onde moro.
tenho um espelho saudoso da minha juventude que me lembra a tua saudade, um pente de madeira como o rapaz das mentiras e um cinzeiro de pedra para apagar os dedos.
ligo ao jardineiro e deixo-me dormir.
o nosso tempo é de abraços e ampulhetas de areia movediça. é de amor barulhento e luar esquivo.
nos outros dias caem-me beijos para o chão.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Ciclo

na sombra estreita do chicote, com a cara encostada aos mosaicos gelados da cozinha e as pernas em abandono, recupero lentamente os sentidos.
levanto-me a custo, de cabeça em vorazes vagas e asas paradas.
despejo no ralo do lava-loiça as lágrimas que deixaste no dedal de prata e tiro a tua fotografia da almofada dos alfinetes.
num compartimento da caixa de costura, entre a tesoura e os colchetes, arrumo as tuas contas. e na primeira gaveta da cómoda escondo os teus olhos com roupa interior.
ontem à noite, depois de partires, o copo esvaiu-se em whisky na minha boca e fixou-me o pensamento à tua ausência.
mergulhei para cima e colidi com um cometa. ainda tentei agarrar-me a uma nuvem, mas ela desfez-se-me entre os dedos. lembrei-me do teu riso por momentos, a viajar num autocarro de dois andares e muitos segredos.
e fiquei a ouvir a lua a passar, num rasgo de genuína humanidade.
hoje desperto de pregos no esterno e agulhas no estômago.
meio termo entre árvore e pássaro, em voo inerte desapareço.
amanhã renasço-me em sangue, rente ao teu osso.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Sala de espera

extermino as horas do universo com as palavras que invento nesta sala de espera contígua à razão, virada a este para o quarto onde nos demos e a oeste para a varanda do silêncio.
cada manhã pinta-me um cabelo de branco e cola-me mais um milímetro da face à face da morte, gelada como a camisa que me veste enquanto te espero.
abro os olhos no vazio e vejo-te a lavar as mãos à torneira e a cruzar as pernas no sofá e a bater ovos em taças de vidro e a repetir um mundo de gestos quotidianos que me falham como me falha a voz quando te abraço.
com o teu nome bordado no peito, emaranhada em exuberantes fragrâncias que tanto doem como consolam, sento-me na sala de espera a tecer o eterno manto de saudade que hei-de abotoar sobre a camisa quando o inverno chegar.
torço os dedos e entorto a cabeça, arranco a pele e desmancho o esqueleto.
e cavo trajectos impossíveis nos velhos corredores do tempo.
e paro o coração voluntariamente.
em vão.
entre as mesas de revistas excessivamente manuseadas e as cadeiras vermelhas, arrumadas junto às paredes, assobias-me melodias assombrosas e agigantas-te no éter, até cobrires o espaço todo e soares na música de todas as orquestras, as dos pássaros e as outras.
então verto os meus sonhos em verso para dentro da tua memorável boca e beijo-te de cor. e guardo a impaciência na juventude. e bebo à esperança pelo copo da noite. e encaro a verdade. e rasgo o pensamento a sorrir em frente ao espelho.
envaidece-me o teu amor. mas a espera faz-me chorar.