sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Indução

o desejo abre-te ao mundo.
depois cega-te.

e a tua mente sagaz,
raramente em uníssono
com o teu volúvel coração,
só tem paz na fé.

mas a fé induz-te em erro,
leva-te a acreditar no impossível.

e só no possível
poderás ser feliz.
e repousar.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Enquanto me lembro

parto para encontrar o medo.
talvez sem amor possa conhecer o seu sabor
e inventar a coragem
neste mundo sujo,
que nem respirar merecia
e no entanto é.

parto enquanto me lembro
desse tempo onde
me deitava para olhar as estrelas
e ainda me espantava se
pelos baldios
tropeçasse em deus.


não levo verdades na língua,
só perguntas
(reclusas nas suas sábias sensações,
tão sábias como a pele.
nem céu que ver
(sem acreditar, não há brilho que brilhe,
ou surpresa possível.


os dias sucedem-se,
transfiguram o passado,
abrem buracos no tempo.

e os meus olhos jorram alegria falsa.

hoje nem morrer vale a pena.
por isso parto no poema.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Às asas

imagino a minha voz a subir as tuas escadas.

lá fora as pedras choram e o sol acabou.
aí dentro o gato enrosca-se onde eu gostaria.
e o mundo dá uma resposta concisa à minha demanda.
diz: sobe as escadas.
é uma turba louca, inumerável, que o diz.
e me mostra o que já sei,
que querer-te é tudo o que faço,
e só o desejo de não te querer me ocupa tanto o espírito
como a saudade.

mas eu já não sei como chegar às tuas escadas.
abro as asas e descubro-as mutiladas.

o mundo não percebe nada.
não sabe, como nós, que não te chega
esse quase nada sem tempo nem sossego.
já o conheces e não te serve.
antes a dor.
e as mãos livres.

voar foi-me interdito
no dia em que pediste paz.

caminhar é fácil.

para consertar as asas, preciso de ti.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Subitamente na noite

nunca mais verei o teu rosto. nunca mais como era antes,
como era um minuto antes da separação.
quando o amor ainda prometia algo de bom.

já então não havia possível que te bastasse,
e até a essência dos dias nos separava.
mas ainda sorrias quando concordávamos que talvez o amor fosse mesmo aquele tumulto desejado, que vem sempre quando menos se espera e para o qual nunca estamos preparados.

promessas nunca fizeste, essas são para os românticos e para os mentirosos e tu nunca foste nem uma coisa nem outra.
e soubeste sempre que o amor também vem de onde menos se quer, e que por isso num minuto nos consola,
mas no seguinte já nos consome.
e que nem sempre triunfa, mas inevitavelmente atrai.

agora
é a ausência interminável dos teus olhos.
e ver-te continuamente em pensamento,
com estes lábios cegos que tão facilmente te beijaram
há 700 noites.

esvaziámos o amor de nós,
e agora
é a ausência interminável dos teus olhos.
e uns raios de sol que por vezes despontam
subitamente a um canto do bar. sem medo.

à espreita do meu próximo verso.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Quanto baste

devotas ao charme da decadência,
amávamos o cheiro a sexo a furar a penumbra,
o êxtase das sensações ébrias,
aquela arte de viver em temerário funambulismo,
incêndios por dentro e o chão resumido a uma densa linha de pó.
quero o teu tempo e a tua luz, disseste.
e eu disse: só me restam sonhos e madrugada.

mais não tinha que te desse, mas mesmo assim ficaste,
por um instante esquecida do teu rumo
e decidida a indagar-me até ao âmago.
e eu ingenuamente alardeei a minha felicidade a quem quisesse ouvir-me, tomando nos braços a tua imperceptível dádiva, corroída por dentro e em permanente agitação.
e convidei-te a entrar na minha história acreditando num futuro de mãos dadas, a dançar a alegria contigo,
enquanto tu passeavas a tua pesada tristeza pelo mundo, secretamente desejando que alguém te lambesse as feridas
e te resgatasse à noite.

mas ninguém veio senão o silêncio, um imenso silêncio onde te deitaste às cegas, como se fosse um farfalhudo tapete de nuvens.

então soltaste a minha mão para agarrar a vida
e perguntaste: quanto te amas.
e eu disse: quanto baste.

depois recolhi a minha verdade e guardei-a.
entreguei-te uma pedra branca
para pores no coração, no meu lugar.
abri o teu peito, vesti o casaco
e saí.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Por onde começar

era o seu primeiro amor adulto
e não sabia por onde começar o fim da saudade.

todos os seus sonhos adoeceram
com um sorriso em falta.
e a voz da culpa voltou a apontar-lhe as falhas.

viu-se ao espelho e não se reconheceu,
deu-se ao caderno em branco
e diluiu-se em tinta para soletrar o amor.
passou a frequentar templos de enganar vácuos
e hospitais para comparar feridas.
tornou a enrolar-se no tecido do medo,
de espada em punho e grito mudo e o corpo dela intacto,
lá por dentro do seu corpo dorido, até à lava.

só lhe restava reescrever a memória
(como fez o proust
e o rimbaud, quem sabe),
incendiar as gavetas das metáforas,
calar o desejo

e esperar.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Medida certa

amor perfeito, amor,
só se for com deus.
e a tua estridente humanidade, embora cintile,
jamais terá a medida do sublime
(senão para mim.

respiramos por acaso.
não por vivermos
porque este viver sem o calor de um abraço é morte já.
respiramos por acaso.
e na geada que nos cerca, em pedra de túmulo esculpida,
sobram correntes de ar muito antigas,
correntes que se enrolam ao pensamento e apertam a alma,
em permanência insinuando-se no rasto da liberdade.

não há parco amor nem excessivo, amor,
só se for infeliz.
e a minha inexorável humanidade desfoca-me o olhar
e morde-me o coração
com a voragem dos abismos funestos,
apartando-me de ti,
(mas ainda o sinto tremer
como lábios a rir
ou corpos em fusão.

e mesmo dentro desta palidez de véus sobrepostos
em que as minhas horas se verteram,
ainda acredito
numa medida certa para nós.