terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Aterrada

a voz dos teus olhos é profunda como raízes, oiço-a
a arranhar-me as gengivas com nitidez nunca esperada enquanto
refaço laços e arrumo a vida.

quis ser para ti um livro que comigo escrevesses,
e a cada dia ler-te de volta, num entendimento a tinta
impressa nas veias e nos ossos,
cinza e prata e sangue sobre papel vivo,
cada instante a crescer até tudo cobrir.

mas o tempo não pode medir-se quando o coração alcança.
ruidoso demais, avança sem piedade e congela a fé.

os ponteiros do relógio como pestanas alongam-se.
a passagem das horas como cigarros queima.
e o meu corpo consumado altera-se, abraçado à memória
contra o lençol.

de sonhos cortados às fatias faço agora versos
que logo definham naquele ambíguo vagar de coisa intangível.
e reinvento o teu coração, que mais não fez senão esperar-me.

sei que é a vez do meu se escrever.
e olho-o aterrada.

o amor está onde deve?

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Coágulo

vens de sobretudo altivo e botas enlameadas
(chove e tu nunca evitas o baldio,
os olhos continuam expressivos
mas eu desisti de tentar entendê-los,
a boca desenha-se em mulheres fantásticas e câmaras ao ombro,
retratos a preto e branco, artes de mãos falantes,
homens enobrecidos pelo sofrimento,
canções.
tens de dizer a cada dia o tanto que apreendes,
não importa se te ouvem. houve um tornado, dizes,
soubeste pelas notícias, no táxi para casa,
o universo desmorona-se.

corres os cortinados, abres as janelas, inspiras o tejo,
imaginas crianças a rir e a brincar e o velho pastor alemão na casa dos teus pais. escutas o latido das gaivotas,
uma buzina de automóvel
(instintivamente conferes o semáforo,
e pensas que preferias chopin.
eu penso que seria maravilhoso se a vida tivesse
a cor dos olhos do sinatra
(mas são os teus que não me saem da cabeça.

fechas as janelas e pedes-me para tocar.
mil gradações de cinza envolvem os nossos corpos,
tu passas a mão pela colecção de lenços e arrumas o canivete desleixadamente deixado sobre o carrinho de chá.
eu penetro em nocturnos mistérios
(por meios tons, andantes e acordes largos,
guiando-te lentamente ao teu âmago
como só no amor.
então aconchegas-te à música que te dou.
a copiosa narrativa interior abraçada ao sublime prazer
de simplesmente sentir, o tule e as sapatilhas definitivamente guardados no fim da memória, as ilusões caladas
pela experiência, as frustrações queimadas
como o leite creme da tua infância.

e forma-se um coágulo de magia onde és feliz.

amanhã ajustamos contas.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Constância

os girassóis impressionistas ainda me impressionam
e a abstracção expressionista engole-me o fôlego,
mas nem o bach do gould me convence
que há virtude nas variações.

portanto não estranho
que oiça os teus passos quando por acidente me encontro
com o andar dengoso de um gato.
ou que o teu precário sorriso se sobreponha
ao ritmo nervoso dos pardais
que vejo voar ao fim da tarde.

no resto do tempo canto a alegria
enquanto redijo enigmas como quem faz listas de compras:
luzes douradas em alvas páginas,
ignóbeis sacrifícios sem justificação.
e as soluções sempre à espreita.

é o meu tempo, todo meu.
sem lugar para prantos diluvais ou remorsos,
nem rumo para além dos brindes bêbados
que a mim mesma entrego.

no final pergunto-me se algum dia aprenderás
a mentir na minha presença e me entenderás a constância.
antes que este pão que amassaste sirva de pedra a novo templo.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Digestão

nesta digestão de insensatos prazeres
absorvo o que me deste como se fosse lisonja. e guardo a afronta embrulhada em salmonelas no revoltoso estômago dos desgostos.
sei bem para onde vou
e que o ódio também voa, dizes.
e eu digo,
aterra-me em fogo e renascerei chama. ateia-me de mar e voltarei onda. afoga-me em poeira e tornarei tornado. jamais me matarás.
tu não acreditas.
lembras-te ainda do tempo em que o tejo era novo e as ciclovias se abriam em flores enquanto pedalavas. e das esplanadas repletas de risos, da boémia inócua dos teus amigos, dos filmes que revias para lhes mudares as personagens, de credos vagos com sabor a essência, do repúdio à nostalgia, da fé no futuro.
mas agora reparas apenas nas sombras
e não encontras senão dejectos quando estendes
os olhos pela cidade e te abraças ao sol.
serve-me uma nova fantasia, dizes.
e eu digo,
aos teus lábios só chegarei o cálice do fracasso e a suave mentira por que anseias, depois de amanhã.

o teu corpo que longo tempo foi de outra paragem não me durou mais do que se demora o amor na boca enquanto diz a vida inteira. abandonou esta casa impregnada de ti por seiscentos e setenta dias onde os dias caem como folhas de outono,
sem ruído e leves, a alcatifar o meu breve caminho,

e hão-se cair até não haver mais.
ou até tu me trazeres uma nova fantasia,
depois de amanhã verdade.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Nuvens (à tua passagem

o vento
(filho de um diabo preto
eleva-se. fustiga o telhado
bate às janelas
molha de cinza as frestas da casa,
os segredos e as carpetes.
e larga-me água no peito.
para que bebas.

eu voo rente à tua sede e respiro fundo.
olho longe, oiço vozes, escavo a noite.

e remendo o coração desolado
neste mundo paralelo ao teu sorriso,
eléctrica rota que só tocará a tua quando
nos empinados caules
começarem a abrir-se corolas
incandescentes de polén
a partir da raiz das nuvens.

essas mesmas nuvens que à tua passagem
se encaracolam e sobre o gelo
do meu corpo (fechado se estendem
para que as alcancem as minhas cansadas mãos
e todas as palavras que não salvam.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Saudade (bem educada

o que terão os teus olhos
para me contar
quando por eles tornar
a passar os meus, aquáticos
?
o que terão as tuas mãos
para me oferecer
quando de novo tocarem
nas minhas, mordidas
?
o que serás tu (nesta perpétua metamorfose
mais adiante na vida,
nessa hora em que
o meu espelho já não sejas,
o meu rosto já não saibas,
o meu sentir já não adivinhes
?
vincaste o teu norte no meu peito
ao partires.
no meu sangue a tua bravura,
o vazio nos meus braços,
e sabor nenhum na boca
além do interdito, nenhum sabor na língua
além da derrota
.
deixaste as lágrimas acesas
ao partires. e o candeeiro
estragado. e a cama livre e a imensa
nudez de areia em queda
nas paredes. e
arrumaste
os meus sonhos na estreita cave das cores esbatidas
onde
só o riso das crianças (que não soubeste abraçar
volteia na minha desamparada dança
de suspiros virados ao infinito
.
nada digo que valha o teu regresso.
a saudade (bem educada
acomoda-se ao futuro.
já não grita, apenas balança. e cabe agora inteira
num único verso. que
à derradeira hora escreverei.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Desarticulada

aliso os poemas que me falharam.

do balde assomam-me em sangue seco,
o meu fracasso evidenciando.
e engomo-os para melhor meditar na minha frustração.

mesmo a olho nu sou um osso em fuga
vigorosamente desarticulado e às próprias
cartilagens avesso e letal,
sem lugar no outro nem destino no mundo,
até ao tutano.
mas em espinhoso almofariz
misturo-me com rosas e chamo-me vida,
aroma de envolver abraços e odes de amor ornar,
na fé permanecendo.
e levo-me para fora de casa sem uma hesitação,
esperando que o perfume do teu desejo não me siga
escada abaixo.

quem me quiser há-de ficar lá dentro, a ver-me
no balde insone, dobrada, por engomar.

um osso sempre de partida
que na tua ausência se faz ler.

domingo, 24 de outubro de 2010

Fosso

recosto-me e deixo a demência soprar-me poemas.
sentada vejo-a alastrar
como se intenção e som tivesse
ébria de si própria a cobrir a aridez do meu silêncio.

e percebo que há respiração nos meus versos.
vivem de cal e fumo puro
raiva a extrair o açúcar à liberdade
excessos em lágrimas, combustões que se sonham regressos,
e este fosso entre o meu corpo e o teu.

recosto-me com um copo de vinho
embrulhada em seda
olhos moles de não te ver
dedos doridos de arrumar lenços
e a faca fina a gritar-me
que nem toda a minha mágoa tem o teu nome.

um adeus rumina nos rios de palavras que troco comigo.

sábado, 23 de outubro de 2010

Em lado nenhum

estamos em lado nenhum
agora.
eu lavo a ferida repetidas vezes no charco da memória
enquanto tu folheias revistas
e imploras solene silêncio.
já contavas com os efeitos secundários deste remédio,
eu só agora reparo que não tinha assim tantos planos
que possa não ter tempo para cumpri-los,
mas que não terei tempo
para esquecer o pássaro vertiginoso dos teus olhos.

e tento cuspir o que me arde,
e detonar o que me cura
e respirar mais uma noite.

estamos em lado nenhum
agora.
eu divirto-me a passar
e passo os dias a disparar dardos de sangue contra o vento.
tu progrides em linha recta
nas plateias
e nos hangares
nos elevadores e nos mais quotidianos gestos
mas inadvertidamente
espreitas o passado nos reflexos do espelho.

estamos em lado nenhum
agora
eu cruzo os braços, incendeio os livros, trituro as ilusões.
e só quero sair daqui.
tu rogas silêncio e dizes,
não se pode viver à míngua do enlevo de ontem.
e eu digo, ontem chegou cedo demais.

estamos em lado nenhum
agora é a minha cabeça o melhor lugar que conheço.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Antecipação

dou-te o braço como quem caminha na avenida
orgulhosa do teu penteado
tu torces-me os cabelos e endireitas-me os tapetes
no vagar do costume

garbosas moças
que por nós passam
são como pássaros a farejar a primavera
rapazes trémulos
que só nelas reparam
são como petiscos a enfeitar a travessa

e eu vou-me aos teus lábios e arranco-te um beijo.

pudesse a noite levar-nos à luz
e os nossos espelhos repartidos
seriam sagazes de tanto nos verem.
mas
um ano sem amor não dá frutos.
apenas flores de sal no deserto,
desejos mal desenhados de azul
e rancor a nadar na cerveja.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Metamorfose

reinvento-me hoje
pouco mais que orvalho
nas nervuras das folhas
na correnteza do que é natural
e de vida firme.

nada me pertence além destas lágrimas
de olhos voltados para dentro
no medo de ver a verdade,
na esperança de não confirmar
que para mim não existe casa,
apenas abrigos,
e que os meus desejos morrem à luz,
sucumbem de imediato
quando lhes bate o sol
e largam a penumbra deste quarto
onde só a memória persiste,
e conforto nenhum.

sei que a minha magia é real,
e posso ter o mundo no corpo,
porque afinal o que perdi
não foi meu jamais.

amanhã
finalmente livre
hei-de converter-me em flor
rosa ou lírio
margarida até
ou narciso.
e
poderás desfolhar-me de novo.
ou pôr-me
a enfeitar-te os cabelos.

nesses finíssimos fios de disfarçada brancura
que por vezes acompanham o vento
viverei feliz.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Carrossel

vens desperta esta noite. os olhos vivos as mãos loquazes
falas dos pobres
das crianças excedentes
de não ter o que comer
da terra que seca e chora
e depois
do privilégio que somos,
e é quase
um assomo de alegria.

vais preparar o chá.
eu mantenho-me a olhar o vazio
genuína na minha ilusão
como carraça agarrada ao que me dás.

afinal não há chá.
nem a música que te apetece. nem rumo para nós.

estão cores ali ao fundo que não vejo,
dizes,
não é minha esta bússola
nem são meus estes sonhos
e estas paredes em branco.

eu oiço-me presa às rodas do desejo
o pensamento em carrossel
o coração desigual.
vejo-te beijar-me como num filme
demoro-me em ti quanto quero
e então digo,
estar a sós materializa o que foste.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Pira

agora que te desfazes nos meus olhos em lenha
tenho fornos a queimar abraços na circulação

mas não me despeço de ti.

o teu corpo habita sem poder o meu
folha em canteiro tombada
expressão de quem nada pede
por minha vontade
eco, penitência
pela medida exacta do futuro
que neste entrançado presente enfrento
e no tempo previsto
encontro-me.

multiforme,
sem remédio
nua em pranto servil
de fogo a rasgar a neve

e as tuas cinzas desde as pontas dos dedos às metáforas.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Notícias

descalço as sandálias
desdobro o jornal e contorno a rotunda aquática dos teus olhos, temo mergulhar neles, entre
sargaços
cadáveres
fantasmas
carícias em suspenso. és só um rumor no meu peito ou a mulher que fuma sempre com a mão esquerda e agora estende roupa
?
soam-me a lume os teus olhos,
contêm a desmesura da humanidade, essa incapacidade de se ser outro para se encontrar,
e afinal choram.
serves-me um café que não pedi, trocas de camisa, persegues uma traça. ouves um alarme e espreitas à janela. ocorre-te que talvez não fosse má ideia começares a roer as unhas, agora que não se pode fumar em lado nenhum.
mas em casa ainda podes.
sim, em casa ainda posso, pensas
à procura do maço. hesitas nos gestos como quando me agarravas de ternura. eu leio, hoje começa o novo ano judaico,
5771. e não te digo.
escolhes um disco, procuras uma faixa,
fumas inevitavelmente de indicador e médio esquerdos e uma leve tremura, que é um quase um sorriso, no lábio superior.
moloko, just being is bewildering, guincha a roisin.
prefiro radiohead, penso. mas não digo. quando éramos felizes, dizia-te tudo
?
há uma veia inédita na tua testa. o sofá parece-te mais desconfortável. pergunto-me se me vês enquanto te olhas ao espelho, como eu muitas vezes nesse quarto de céu onde dormimos. se és uma presença de luz ou a mulher que gostava de ser um gato e agora se senta ao meu lado.
aplaca-me a ira, esta vertigem do engano, dizes.
tento concentrar-me no mundo sujo do jornal. os movimentos do relógio imitam o meu coração percussivo, o ar torna-se denso, tu apagas o cigarro. não sabes o que fazer às mãos nestas áridas noites em que me visitas.

todas as noites têm um sol a preparar-se para nascer.
mas se viveres no deserto, nenhuma voz humana
poderá ensinar-te o milagre.
não há erro que perdure, digo eu.
tu pensas queijo
chocolate
pão
salmão
gelatina, o que te faz falta, tens de ir às compras, enervam-te as ausências. eu leio,
irão suspende morte de mulher por apedrejamento e sorrio. tu lembras-te das mãos brancas do teu pai
dos meus silêncios indiscretos
dos nossos corpos em concha. eu lembro-me que fujo sempre ao que tenho, habituei-me a falhar.
e nunca te disse tudo.
leva-me para casa, dizes.
eu volto a contornar os teus olhos. mas escuto-os ainda. e então digo,
a nossa casa é da infância, morreu no bibe.

largo o jornal e calço as sandálias.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Fracção

subo as escadas
desta noite de silhuetas recortadas.
não vejo rostos
nem mesmo o teu,
essa presença de cinza
com que desejei pintar os meus dias.
nem vejo horizonte.
só estes degraus contínuos e estes pés a vencê-los.

sei que é da natureza da carne desejar o grito e
do coração procurar o amor.
sei o rumo de alguns rios, um punhado de adivinhas,
como pode doer um abraço.
e sei ainda que cada manhã é única como um ser humano.

de resto
sou só silêncio.
e estes pés em ascensão.

mas às vezes páro e afago as asas
como se ainda as tivesse,
dizem que é comum nos amputados,
e então sorrio e
numa fracção de saudade recordo o teu rosto.
guia-me ao teu inverno, repito.
e tu tornas a dizer, só voo contigo.

eu pestanejo e recomeço a subir.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Abrigo

trago a tua voz tatuada nas asas.
nelas voo pelas tardes
e as tuas dores
latejam-me nos nervos
apertam-me os músculos
martelam-me os ossos
e em cansaço
e solidão se evolam
neste cigarro que arde lento
entre os meus dedos.

trago a tua voz tatuada nas asas.
oiço-a rir e acenar-me,
chorar nunca,
nem gritar,
porque à minha memória pertence
e eu prefiro-a feliz.

que assim seja a vida de hoje em diante.
enquanto trago nuvens
e bebo o sol
e engulo o vento,
a tua voz, tatuada nas minhas asas,
abrigando-me do tempo,
esse mistério silencioso
que não pára de renascer
mas só sabe fugir.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Esse teu olhar

esse teu olhar sempre em fuga,
que por instantes ao meu regressa
e logo se aparta numa cascata de medos,
guardo-o no peito.

escondido brilha
e fala-me do que não dizes
como se cantasse quando se fecha
e me pudesse sossegar
ou trazer-te ao meu desejo.

e em mim esculpe cores em nobres materiais
e afia-me as mãos para lhes apurar o traço
neste cosmos de papel que invento,

até que adormeço no teu esquivo abraço,
sereno no que sonho, e
encostada à humana doçura
do teu sorriso,
acredito que te terei.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Outro tu

vertes mudos espasmos nas encostas da luz
em rubra dádiva, não falas, cintilas.
não gemes, sorris.

o amor verte raios nas tuas costas,
volta a sorrir-te de longe,
convence-te metafísica e perene,
mente que não se esquece,
espírito apenas quase
e justa.

então sabes do sol e dos sentidos,
do teu corpo que faz doer um minuto
e não marca nódoa.
mas recordas que só as tuas palavras perduram,
a parte de ti que nenhum silêncio mata,
a única cicatriz indisfarçável
que neste chão de papel rodopia.

magoas-te até ao firmamento,
estrelas e fulgor e infinito,
num outro como só de sangue
como anjo ou conceito
em virtude realizado.

e a memória que me falha não te toca.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

No entanto

são de papel e precárias,
sabem a chutney essas pequenas tragédias que nos tolhem
e no entanto

morrem amantes todos os dias, seres amados e altruístas,
flores e vampiros e bombeiros,
sábios sem bigode,
mergulhadores,
equilibristas
e no entanto

a nossa memória permanece num caos de mil cores,
só nosso
em gradações de faísca permanente.

a esperança é aquele embuste enraízado
que nos norteia,
sólido como a minha mão na tua,
e no entanto

fosse o beco transponível
e não me demoraria à tua porta
a matar o que resta do silêncio
de ombros rasteiros,
derrota que grita na pele
e no entanto

ainda o olhar sedento

agridoce.
e a alma.

terça-feira, 20 de julho de 2010

A cumprir-me

porque me exiges certezas
e promessas seguras
conhecendo-me em abismo,
porque me aconteces como nuvem
e te ofereces em festa florida,
porque és a repetição de um sonho
à espera da suave manhã que tarda,
porque me pedes o que me transforma
e um brilho solar a irromper
neste peito que só na noite se afirma,

não consigo cumprir-me senão de pálpebras coladas,
a domar ausências
a alinhavar máscaras
a matar rancores
a inflamar sorrisos
a reformular dádivas.

porque em mim, para além de mim,
existe apenas caos
e a maldição da memória,
só poderia acreditar nos teus sublimes olhos
e ser-te exemplar
se te demorasses no meu abraço
mais que dois momentos e um pau de giz,
e eu pudesse guardar o que lembro
debaixo da pele,
a salvo de ti.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Agarra

como és esse osso partido
sem mestre nem beleza
e és frondosa árvore de verde-luz e volúpia acesa,
como vais por esse caminho
de dores apertadas
e vais sem saber que a noite estreita as estradas,
como tens essa cegueira
com íris de punhais
e tens o tempo todo da vida para teres mais,

aqui me recolho para te ensinar a ver.
agarra a minha mão e não a soltes,
nunca a soltes
na pressa de me ter.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Revólver

o meu coração é um revólver
que carrego de balas líricas

perigosos sentires indizíveis
pulsam nele e tornam-se poemas
que disparo
e ora ferem ora enlevam
mas sempre levam para um tumulto sem fundo
o mesmo tumulto que no meu peito divaga.

e por ele me amam
e por ele me temem

como quem ama e teme o mar,
o mar que mata e alimenta o mundo.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Sem tamanho

num certo momento tu eras o futuro
inteiro vasto fundo
e todos os meus pensamentos soavam a música,
em compassos imaginários compondo a canção perfeita,
para que a dançasses
e eu te visse a levitar
na minha etérea melodia.

num certo momento a síntese de nós era o futuro
pleno inchado longo
e as minhas velhas dores gangrenavam de vez,
feridas escarlates tornadas cicatrizes de ferrugem,
para que todo o meu interior se abrisse ao teu espaço
e pudesse enfim abraçar-te.

mas tu não viste.
nada viste senão o teu próprio pranto
e a cinza a ameaçar os teus cabelos.
nada sentiste senão a tua sede, a tua fome,
a tua espera, as tuas melancólicas rugas,
o teu medo.
e na tua impaciente cegueira morreste-me
à janela do tempo.

agora
no branco marmóreo do presente
leio que por vezes
o futuro dura mesmo só um momento.
e nenhum momento tem tamanho
para estancar para sempre
dois corações que sangram desde o primeiro fôlego.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Personagens

trazes o peter pan à solta nos cabelos,
a alice de espanto nos olhos,
o corto maltese nas unhas
que te equilibram nas rochas da praia.
e o incal que abraças finalmente te tolda o umbigo.

não sei para onde vais com todas essas personagens
que às cómodas mentiras te vedam.
e a noite translúcida no mar,
essa verdade adolescente
que o ramos rosa citou,
despenha-se pelas manhãs no teu caminho,
iluminada apenas pelo astro seminal
que em dias claros desponta no teu peito.

mesmo em honesto desejo pulsante
jamais serás baía tranquila onde flutuar,
tal como eu nunca serei o oceano revolto
por que aspiras.

o meu sonho hoje
é só um mergulho vertical.
desalmado e mal amado
e todo feito de transparências
a deslizar num arco-íris que chora
e que em música se embala.

por perecível que o meu corpo seja,
resisto ainda.
e faço-me e desfaço-me e refaço-me.
e por ti passo
feliz
na companhia de tudo.

o resto da vida é pó.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Segue o porvir

na tua fome de humanidade reside a tua labuta,
na tua ilusão de bravura urge o teu destino.
e eu, no meu eléctrico vagar
de pólos e pontos e poros
e pés em carne viva e remoinhos de areia,
abraço-te para que não me doas
enquanto a neve me tinge mais dois cabelos.

e ato o amor ao mar.
e entrego-me ao porvir.

moro entre o lodo e a festa,
entre o calendário e o riso, entre mares
neste navio abismal,
a vender utopias a peso de convite
e sólidos vapores
para consumo marinheiro.

e todos os dias encontro
um tempo novo de oceanos ditosos
e rugas nenhumas, para um derradeiro
abraço feliz.

a essência, não vivida, segue à margem.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Dos livros que amei

fujo
dos olhos perigosos e de abraços que tentam agarrar-me por fora para disfarçar delirantes vácuos,
tão antigos como o ciúme.
e de amores mais que tácteis,
daqueles que enfeitam os livros que em tempos amei.

preservo-me do medo através da ternura e parto-me em gritos
que só se acabam quando aplaco a muda fúria burocrática do quotidiano.
vou desfiando segredos e partilhando silêncios neste mundo de papel. e sento-me cansada na cadeira da desgraça.

mas toda eu sou de luz e puro sentimento
e até da desgraça consigo rir-me,
aprendi a fazê-lo há muito, com o beckett o cesariny o lorca,
até com o shakespeare e a freira mariana.
e sei que não voltam a tomar-me as lágrimas,
não voltam a tocar-me os inúteis rituais,
não voltam a tolher-me as pequenas mortes diárias.

hoje digo,
os meus dias são habitados por lírios de feltro e raios de sol.
e tu dizes,
todas as manhãs saio das nossas cabeças para inventar a paz.
tanto melhor,
assim facilmente me desvio das florestas sombrias
e protejo os pés dos tropeções.

e tudo o que em mim era impermanência
se dissolve em corrente na resoluta água de um beijo certo.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Mãe

a tua fragilidade dói-me nos braços,
tem o peso de mil soldados
e um tremor de natas,
todas as promessas falhadas
e sete décadas de desilusão.

(e vejo lenços ao vento
como bandeiras a acenar desgostos.

nos teus olhos trazes embrulhados
os sonhos de quem amaste,
e fachadas de igrejas vazias,
onde nem as tuas preces cabem
nem a minha fé te fala.

(e vejo rostos de medo
fechados ao mundo
e sombrios como o mar ao crepúsculo.

as tuas noites brancas à espera de ternura
vertem-se em cascatas
que te comem as pestanas
e embalam esse inverno
que tanto em ti se alonga.

mas na memória
(que sem pudor reescrevo, porque posso,
vejo muitas outras coisas:
o meu sorriso a povoar o teu sorriso
o meu abraço a inventar o teu corpo
a minha mão a ajustar-se à tua
em silêncio cúmplice
e autêntico conforto.

como se o amor te bastasse.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Dos trevos

o tempo dos trevos é difícil, amor,
como não é
o das rosas fúnebres
nem sequer o dos enigmas
dessa nossa esfinge forrada à Roy,
bonecos a cores e onomatopeias desenhadas,
tarde adentro em pulsar engenhoso.

o tempo dos trevos é difícil, amor,
como as vidas que cedo nascem
e mal se erguem enquanto o sangue não madruga
e a expressão do medo dorme lisa.

por isso
não venhas falar-me desse tempo, amor,
e admite tempo aos trevos
para que retornem ao seu verde fulgor
e lentamente se abram às folhas de sal
que em líquidas paisagens
verto sobre o teu corpo,
agora de sol.

ainda ontem, amor,
em ânsias de bronze fremente,
tropecei no nariz da esfinge.
estava senil como um velho
e tranquei-a na gaveta do meio,
entalada entre peúgas,
inanimados leques
e memórias reescritas a pincel.

nada temas, amor,
amanhã a chave será tua.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Renascer

amarrada às sombras
e diariamente
à espera de
como o sol
renascer
sábia me torno
num transtorno de gestos
e perigosamente em teu redor
recupero a fé
e reencontro o verbo.

hoje troco
sem hesitar
a fusão pela função
a posse pela paz
a guerra pelo riso.
e o amor faz-se a caminho
sem ansiedade
mas ainda
de pé,
em desalinho brando.

hoje
o meu coração
despenteia-se de novo.

sábado, 20 de março de 2010

Armadilha

à entrada de Outubro, havia raparigas na vindima, colina acima e abaixo de cestos às costas, tesouras de poda e aventais, botas caneleiras e riso fácil.
raparigas quase inocentes, que de noite brincavam ao amor.
raparigas a morder o mundo, incapazes de florescer.
nós, novas, em branca deriva das nossas próprias almas.

o armário de chitas e cambraias coloridas espreitava-nos os gestos balbuciantes.
e eu indagava-te em suspiros, obrando ilusões na pulsão de desejar sentir sem freio, escapando à materialidade opressiva e cinzenta das coisas banais.
ao longe, ouvíamos o murmúrio do rio e os latidos dos cães. e uma poeira luminosa atravessava as frestas dos estores e revertia a penumbra em crinas de fulgor quase estival,
exibindo a voz clara da tua pele.
amo-te, dizias,
desde sempre, para sempre e sempre originalmente.
e eu tremia para dentro.

havia uma cama mole e uma cama dura, que usávamos à vez, muito lentamente.
é verdade, a lentidão é do que melhor me lembro.
ao fechar os olhos, consigo ainda evocar aquele vagar ao crepúsculo ou na madrugada, o ritmo quase imperceptível, aquela contenção tão minha e contrastante com o meu interior de sangue a arfar e cérebro a fervilhar e suor a galope nos poros.
nesse tempo tinha o coração esburacado de desamor, mas cada recanto vazio se enchia aos poucos, muito devagar, como se me seguisse as mãos.
e já nem sabia quem era quando a vida por momentos me apartava de ti e só me restava o teu nome inscrito, gritando ansioso, em cada uma das minhas palavras.
enchia cadernos de lirismo púbere, que por vezes tu ilustravas com os traços oníricos das tuas emoções inspiradas na Antiguidade, pejadas de divindades imperfeitas, umas guerreiras, outras carinhosas, todas ciumentas e vis como os humanos, mas em corpos secos e tão frios e lisos como o mármore.

um dia, por gentileza, permiti que partisses.
e as raparigas quedaram-se mudas como as divindades no armário de chitas e cambraias, destinadas a definhar pouco a pouco enquanto eu e tu finalmente florescíamos no real.
para sempre e sempre originalmente.
como arte em progresso.
e sabendo que o amor não é mais do que uma armadilha fatal.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Vês?

não,
não quero cortar laços,
antes desatar nós.

e preciso da tua ajuda para morrer.
de morte limpa,
olhos lavados,
e nenhum mistério para além da pele.

vês ali aqueles sonhos dependurados,
sangue velho erguido à cabeça,
como coroa ou privilégio,
de repente
descendo aos punhos cerrados?
vês ali aqueles sonhos espalhados,
no chão amontoados
como coisa morta
ou roupa antes da fusão?
aqueles sonhos que em dias claros brilhavam
e definham agora sem onde crescer?

foram meus.
são de mar ainda.
e murmuram:
nenhuma traição justifica não trocarmos lágrimas.
nenhum erro sobrevive ao amor.

eu roo as unhas e respondo
que não há ponte
que sem manutenção
permaneça.
nem mão que acaricie sem desejo,
ou beijo que fale no silêncio,
ou ternura que se imponha à mágoa.
e
embrulho-me num tormento etéreo,
breve como a lua cheia.
e prossigo.

não quero cortar laços,
antes desatar nós.

quando me ajudas a morrer?

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Nortada

enquanto te desperdiças em abraços nocturnos
e fulgores perfumados,
de espírito errante entrelaçado como sempre
nas malhas da sorte,
eu reconstruo a nossa comunhão
com todas as palavras que nos dizem,
nos tons escarlates das cicatrizes recentes,
as que vibram ainda na memória,
sem ambição para além da imortalidade.

adivinho esse teu provisório consolo,
tão efémero como um sorriso,
e breve como aprecias.
e comparo-o com estas telas onde nos pinto
em sangue e sal e crueza flamejante,
almejando a eternidade
e onde avança tudo o que sou ,
tudo o que jamais te alcançará,
por ser contrário ao mundo que desde o âmago trazes nos olhos,
dissecado à tua imagem
e agrilhoado a papiros de lei
que nem o teu coração entende.

continuas a proferir as tuas verdades,
e a agir de acordo,
sorrindo ao engano dos homens e à volúpia das mulheres,
imaginando-te tão transitória por dentro
como esse teu corpo diariamente a caminho da morte.
e eu reconstruo a minha sensação de ti
em breves fragmentos de vida,
com o respeito possível e a fé intocada.

só não chegarei a um eloquente epílogo
se um acaso muito convicto me desviar da rota.
e então serás finalmente segredo
e eu, alienação.

mas por enquanto sigo a nortada.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Promessa

estávamos no sofá, como de costume. a conversar. enquanto o Bird assobiava. tínhamos acabado de apagar mais um charro, havia fumo a subir pelas paredes e frémitos a descer pelas minhas costas. sentia já aquele suave torpor a caminhar-me nas veias, nos olhos o habitual rasto de sangue, a cabeça em remoinho.
olhei para ti, afaguei a tua mão muito levemente e disse:
um dia escreverei um romance sobre nós.
conseguias, amor meu, perguntaste.
claro, respondi com um sorriso quase tímido,
sem saber que falava verdade.
a sério, insististe, entre a excitação e a incredulidade.
sim, e vai chamar-se junkie love, decidi,
agora de sorriso mais aberto, convicto.
depois beijei-te durante cinco minutos inteiros.
afastei-me e perguntei:
fumamos mais um?

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Verdade

eras um náufrago,
eu outro,
sem ilhas onde ancorar,
sem onde descalçar os pés, deitar
e caminhar.

e eu gostava de te fazer rir
e do teu abraço redondo à chegada,
da forma como sandálias vermelhas
e fragrâncias místicas
surgiam do nada,
a tempo de um beijo redentor.


mas o prazer, por mais puro,
sei-o agora,
nunca é grande companheiro:
veda-nos ao silêncio onde mais somos nós,
e por momentos esconde a inexorável dor da existência,
essa dor voraz
que é sempre permanecer do lado de fora
de quem queremos acender por dentro.


hoje invento e reinvento
ainda,
dia a dia,
a nossa casa na adraga,
virada a noroeste e batida pelo vento,
pedra sobre pedra,
em construção,
com estas mesmas mãos que nos fizeram,
estas mãos que só em nós
não eram redundância.

e nesta morna solidão
vou reconhecendo outros impossíveis
que em realidades paralelas gritam
para que eu os contemple
na minha deriva.

náufrago ainda
hoje sei que o pavio só se extingue
quando outra chama lhe chega
e lhe promete calor
e uma ilha onde arder.

mas sei também,
essa verdade desde sempre,
que o pior de tudo é nunca ter amado.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Desvio

há um sonho de morte nesse olhar.
um desvio claro
da clareza da vida,
uma febre doida
na penumbra esticada.

e há o medo da dor
e a fé no futuro.
e o ataque inumano de todos os passados
em espelhos repetidos,
virados para dentro.
e o desconforto de nunca saberes
para onde correrão os rios
enquanto não secam.


secos estão os teus olhos agora.
enxutos nesse imenso pano turco
que trazes à cabeça,
embrulhados como as nossas mãos
(um dia) uma na outra,
calados por meio dessa catarse fúnebre
onde te moves.

e já não reconheces a doçura no beijo
nem acreditas no amor,
único elemento puro do humano que somos.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

É assim

sonho o dia em que os teus lábios regressam aos meus
e mesmo que não aconteça
sonho ainda
e mais uma vez
sem com o sonho lutar.

traz-me vida
este sonho
como se fosse vivida
e tem uma crosta de sal que me tempera os versos.
e é consciência
e é espírito
e toma-me de luz pelos poros do avesso.

é um sonho de ti
que me ocupa por inteiro
e transborda
e fala e chora
mas nunca sai de mim.


para quem a imortalidade interessa,
é assim.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Indução

o desejo abre-te ao mundo.
depois cega-te.

e a tua mente sagaz,
raramente em uníssono
com o teu volúvel coração,
só tem paz na fé.

mas a fé induz-te em erro,
leva-te a acreditar no impossível.

e só no possível
poderás ser feliz.
e repousar.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Enquanto me lembro

parto para encontrar o medo.
talvez sem amor possa conhecer o seu sabor
e inventar a coragem
neste mundo sujo,
que nem respirar merecia
e no entanto é.

parto enquanto me lembro
desse tempo onde
me deitava para olhar as estrelas
e ainda me espantava se
pelos baldios
tropeçasse em deus.


não levo verdades na língua,
só perguntas
(reclusas nas suas sábias sensações,
tão sábias como a pele.
nem céu que ver
(sem acreditar, não há brilho que brilhe,
ou surpresa possível.


os dias sucedem-se,
transfiguram o passado,
abrem buracos no tempo.

e os meus olhos jorram alegria falsa.

hoje nem morrer vale a pena.
por isso parto no poema.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Às asas

imagino a minha voz a subir as tuas escadas.

lá fora as pedras choram e o sol acabou.
aí dentro o gato enrosca-se onde eu gostaria.
e o mundo dá uma resposta concisa à minha demanda.
diz: sobe as escadas.
é uma turba louca, inumerável, que o diz.
e me mostra o que já sei,
que querer-te é tudo o que faço,
e só o desejo de não te querer me ocupa tanto o espírito
como a saudade.

mas eu já não sei como chegar às tuas escadas.
abro as asas e descubro-as mutiladas.

o mundo não percebe nada.
não sabe, como nós, que não te chega
esse quase nada sem tempo nem sossego.
já o conheces e não te serve.
antes a dor.
e as mãos livres.

voar foi-me interdito
no dia em que pediste paz.

caminhar é fácil.

para consertar as asas, preciso de ti.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Subitamente na noite

nunca mais verei o teu rosto. nunca mais como era antes,
como era um minuto antes da separação.
quando o amor ainda prometia algo de bom.

já então não havia possível que te bastasse,
e até a essência dos dias nos separava.
mas ainda sorrias quando concordávamos que talvez o amor fosse mesmo aquele tumulto desejado, que vem sempre quando menos se espera e para o qual nunca estamos preparados.

promessas nunca fizeste, essas são para os românticos e para os mentirosos e tu nunca foste nem uma coisa nem outra.
e soubeste sempre que o amor também vem de onde menos se quer, e que por isso num minuto nos consola,
mas no seguinte já nos consome.
e que nem sempre triunfa, mas inevitavelmente atrai.

agora
é a ausência interminável dos teus olhos.
e ver-te continuamente em pensamento,
com estes lábios cegos que tão facilmente te beijaram
há 700 noites.

esvaziámos o amor de nós,
e agora
é a ausência interminável dos teus olhos.
e uns raios de sol que por vezes despontam
subitamente a um canto do bar. sem medo.

à espreita do meu próximo verso.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Quanto baste

devotas ao charme da decadência,
amávamos o cheiro a sexo a furar a penumbra,
o êxtase das sensações ébrias,
aquela arte de viver em temerário funambulismo,
incêndios por dentro e o chão resumido a uma densa linha de pó.
quero o teu tempo e a tua luz, disseste.
e eu disse: só me restam sonhos e madrugada.

mais não tinha que te desse, mas mesmo assim ficaste,
por um instante esquecida do teu rumo
e decidida a indagar-me até ao âmago.
e eu ingenuamente alardeei a minha felicidade a quem quisesse ouvir-me, tomando nos braços a tua imperceptível dádiva, corroída por dentro e em permanente agitação.
e convidei-te a entrar na minha história acreditando num futuro de mãos dadas, a dançar a alegria contigo,
enquanto tu passeavas a tua pesada tristeza pelo mundo, secretamente desejando que alguém te lambesse as feridas
e te resgatasse à noite.

mas ninguém veio senão o silêncio, um imenso silêncio onde te deitaste às cegas, como se fosse um farfalhudo tapete de nuvens.

então soltaste a minha mão para agarrar a vida
e perguntaste: quanto te amas.
e eu disse: quanto baste.

depois recolhi a minha verdade e guardei-a.
entreguei-te uma pedra branca
para pores no coração, no meu lugar.
abri o teu peito, vesti o casaco
e saí.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Por onde começar

era o seu primeiro amor adulto
e não sabia por onde começar o fim da saudade.

todos os seus sonhos adoeceram
com um sorriso em falta.
e a voz da culpa voltou a apontar-lhe as falhas.

viu-se ao espelho e não se reconheceu,
deu-se ao caderno em branco
e diluiu-se em tinta para soletrar o amor.
passou a frequentar templos de enganar vácuos
e hospitais para comparar feridas.
tornou a enrolar-se no tecido do medo,
de espada em punho e grito mudo e o corpo dela intacto,
lá por dentro do seu corpo dorido, até à lava.

só lhe restava reescrever a memória
(como fez o proust
e o rimbaud, quem sabe),
incendiar as gavetas das metáforas,
calar o desejo

e esperar.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Medida certa

amor perfeito, amor,
só se for com deus.
e a tua estridente humanidade, embora cintile,
jamais terá a medida do sublime
(senão para mim.

respiramos por acaso.
não por vivermos
porque este viver sem o calor de um abraço é morte já.
respiramos por acaso.
e na geada que nos cerca, em pedra de túmulo esculpida,
sobram correntes de ar muito antigas,
correntes que se enrolam ao pensamento e apertam a alma,
em permanência insinuando-se no rasto da liberdade.

não há parco amor nem excessivo, amor,
só se for infeliz.
e a minha inexorável humanidade desfoca-me o olhar
e morde-me o coração
com a voragem dos abismos funestos,
apartando-me de ti,
(mas ainda o sinto tremer
como lábios a rir
ou corpos em fusão.

e mesmo dentro desta palidez de véus sobrepostos
em que as minhas horas se verteram,
ainda acredito
numa medida certa para nós.