quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Notícias

descalço as sandálias
desdobro o jornal e contorno a rotunda aquática dos teus olhos, temo mergulhar neles, entre
sargaços
cadáveres
fantasmas
carícias em suspenso. és só um rumor no meu peito ou a mulher que fuma sempre com a mão esquerda e agora estende roupa
?
soam-me a lume os teus olhos,
contêm a desmesura da humanidade, essa incapacidade de se ser outro para se encontrar,
e afinal choram.
serves-me um café que não pedi, trocas de camisa, persegues uma traça. ouves um alarme e espreitas à janela. ocorre-te que talvez não fosse má ideia começares a roer as unhas, agora que não se pode fumar em lado nenhum.
mas em casa ainda podes.
sim, em casa ainda posso, pensas
à procura do maço. hesitas nos gestos como quando me agarravas de ternura. eu leio, hoje começa o novo ano judaico,
5771. e não te digo.
escolhes um disco, procuras uma faixa,
fumas inevitavelmente de indicador e médio esquerdos e uma leve tremura, que é um quase um sorriso, no lábio superior.
moloko, just being is bewildering, guincha a roisin.
prefiro radiohead, penso. mas não digo. quando éramos felizes, dizia-te tudo
?
há uma veia inédita na tua testa. o sofá parece-te mais desconfortável. pergunto-me se me vês enquanto te olhas ao espelho, como eu muitas vezes nesse quarto de céu onde dormimos. se és uma presença de luz ou a mulher que gostava de ser um gato e agora se senta ao meu lado.
aplaca-me a ira, esta vertigem do engano, dizes.
tento concentrar-me no mundo sujo do jornal. os movimentos do relógio imitam o meu coração percussivo, o ar torna-se denso, tu apagas o cigarro. não sabes o que fazer às mãos nestas áridas noites em que me visitas.

todas as noites têm um sol a preparar-se para nascer.
mas se viveres no deserto, nenhuma voz humana
poderá ensinar-te o milagre.
não há erro que perdure, digo eu.
tu pensas queijo
chocolate
pão
salmão
gelatina, o que te faz falta, tens de ir às compras, enervam-te as ausências. eu leio,
irão suspende morte de mulher por apedrejamento e sorrio. tu lembras-te das mãos brancas do teu pai
dos meus silêncios indiscretos
dos nossos corpos em concha. eu lembro-me que fujo sempre ao que tenho, habituei-me a falhar.
e nunca te disse tudo.
leva-me para casa, dizes.
eu volto a contornar os teus olhos. mas escuto-os ainda. e então digo,
a nossa casa é da infância, morreu no bibe.

largo o jornal e calço as sandálias.

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