sábado, 27 de fevereiro de 2010

Nortada

enquanto te desperdiças em abraços nocturnos
e fulgores perfumados,
de espírito errante entrelaçado como sempre
nas malhas da sorte,
eu reconstruo a nossa comunhão
com todas as palavras que nos dizem,
nos tons escarlates das cicatrizes recentes,
as que vibram ainda na memória,
sem ambição para além da imortalidade.

adivinho esse teu provisório consolo,
tão efémero como um sorriso,
e breve como aprecias.
e comparo-o com estas telas onde nos pinto
em sangue e sal e crueza flamejante,
almejando a eternidade
e onde avança tudo o que sou ,
tudo o que jamais te alcançará,
por ser contrário ao mundo que desde o âmago trazes nos olhos,
dissecado à tua imagem
e agrilhoado a papiros de lei
que nem o teu coração entende.

continuas a proferir as tuas verdades,
e a agir de acordo,
sorrindo ao engano dos homens e à volúpia das mulheres,
imaginando-te tão transitória por dentro
como esse teu corpo diariamente a caminho da morte.
e eu reconstruo a minha sensação de ti
em breves fragmentos de vida,
com o respeito possível e a fé intocada.

só não chegarei a um eloquente epílogo
se um acaso muito convicto me desviar da rota.
e então serás finalmente segredo
e eu, alienação.

mas por enquanto sigo a nortada.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Promessa

estávamos no sofá, como de costume. a conversar. enquanto o Bird assobiava. tínhamos acabado de apagar mais um charro, havia fumo a subir pelas paredes e frémitos a descer pelas minhas costas. sentia já aquele suave torpor a caminhar-me nas veias, nos olhos o habitual rasto de sangue, a cabeça em remoinho.
olhei para ti, afaguei a tua mão muito levemente e disse:
um dia escreverei um romance sobre nós.
conseguias, amor meu, perguntaste.
claro, respondi com um sorriso quase tímido,
sem saber que falava verdade.
a sério, insististe, entre a excitação e a incredulidade.
sim, e vai chamar-se junkie love, decidi,
agora de sorriso mais aberto, convicto.
depois beijei-te durante cinco minutos inteiros.
afastei-me e perguntei:
fumamos mais um?

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Verdade

eras um náufrago,
eu outro,
sem ilhas onde ancorar,
sem onde descalçar os pés, deitar
e caminhar.

e eu gostava de te fazer rir
e do teu abraço redondo à chegada,
da forma como sandálias vermelhas
e fragrâncias místicas
surgiam do nada,
a tempo de um beijo redentor.


mas o prazer, por mais puro,
sei-o agora,
nunca é grande companheiro:
veda-nos ao silêncio onde mais somos nós,
e por momentos esconde a inexorável dor da existência,
essa dor voraz
que é sempre permanecer do lado de fora
de quem queremos acender por dentro.


hoje invento e reinvento
ainda,
dia a dia,
a nossa casa na adraga,
virada a noroeste e batida pelo vento,
pedra sobre pedra,
em construção,
com estas mesmas mãos que nos fizeram,
estas mãos que só em nós
não eram redundância.

e nesta morna solidão
vou reconhecendo outros impossíveis
que em realidades paralelas gritam
para que eu os contemple
na minha deriva.

náufrago ainda
hoje sei que o pavio só se extingue
quando outra chama lhe chega
e lhe promete calor
e uma ilha onde arder.

mas sei também,
essa verdade desde sempre,
que o pior de tudo é nunca ter amado.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Desvio

há um sonho de morte nesse olhar.
um desvio claro
da clareza da vida,
uma febre doida
na penumbra esticada.

e há o medo da dor
e a fé no futuro.
e o ataque inumano de todos os passados
em espelhos repetidos,
virados para dentro.
e o desconforto de nunca saberes
para onde correrão os rios
enquanto não secam.


secos estão os teus olhos agora.
enxutos nesse imenso pano turco
que trazes à cabeça,
embrulhados como as nossas mãos
(um dia) uma na outra,
calados por meio dessa catarse fúnebre
onde te moves.

e já não reconheces a doçura no beijo
nem acreditas no amor,
único elemento puro do humano que somos.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

É assim

sonho o dia em que os teus lábios regressam aos meus
e mesmo que não aconteça
sonho ainda
e mais uma vez
sem com o sonho lutar.

traz-me vida
este sonho
como se fosse vivida
e tem uma crosta de sal que me tempera os versos.
e é consciência
e é espírito
e toma-me de luz pelos poros do avesso.

é um sonho de ti
que me ocupa por inteiro
e transborda
e fala e chora
mas nunca sai de mim.


para quem a imortalidade interessa,
é assim.