sábado, 27 de outubro de 2007

Ascensão

eu podia ser o teu ringue de patinagem, o teu anjo, o teu falcão. entrar dentro do teu cérebro como uma ária de wagner e atravessar escalas, do rumor ao grito.
podia ser um suspiro de luz na tua noite, um sonho de laranja dentro das tuas tardes, uma harpa ajoelhada às tuas manhãs. e comprar-te ociosos domingos todos os dias.
mas não podia ser a tua pele.
nem a tua voz.
o teu peito inflamou-se quando soubeste a verdade.
descobriste as cores breves do meu mundo a rodopiar em espirais cruzadas nas planícies dos cometas e voltaste a desejar que te vestisse, que cobrisse a tua carne com o meu engenho e te deixasse falar pela minha boca.
mas não tornaste a pedir o impossível.
guardaste o relevo dos meus sinais na ponta dos dedos e olhaste-me de rosto inclinado para sul, sem sorriso, íntimo ao escarlate das chagas do tempo.
e então disseste: conheço um atalho para o teu coração.
e eu disse: em júpiter respiramos amor.
estendi-te a mão e ascendeste comigo.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Península

uma estrela reluz na tua boca e salpica-me os olhos através do azul que flutua acima de todas as coisas.
por estes dias somos imagens paralelas, projectadas uma na outra, a beijar o sol e a engolir o luar, enquanto as montanhas crescem e as folhas caem e o mar treme e as pedras do chão se misturam com o pó das casas.
mas não há fôlego de vento que nos gele o fulgor, ponteiro de relógio que nos distraia do sonho, estrada interminável que nos desvie da viagem.
os nossos sabores procuram-se às cegas nas madrugadas suplicantes da saudade.
dizes: vem.
e eu digo: sempre.
atravesso o cosmos mutante, o mistério da vida, o inefável, o inexplicável, o infinito, o desconcerto do tempo, o desacerto da lonjura. e vou.
tu desmanchas a sólida solidão das horas com um sopro elíseo e inscreves cada textura do teu mundo na minha pele feliz.
e eu exilo-me da realidade na península do teu corpo, lá onde a tua carne continental acaba e começa o oceano flamejante do prazer.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

A ilha

o perímetro dos meus passos é esta ilha de vidro que há séculos se parte. cada dia encurta a área para onde caminhar.
e a escassez de chão sedentariza-me.
do meu triângulo ao relento, vejo-te remar na direcção dos sulcos intransitáveis das ondas, esperando alcançar o coração do litoral.
às vezes voltas à noite, outras não.
na estação das chuvas assinalas o regresso com uma música líquida que te precede no cais. com o sol nunca vens.
mas um dia decides parar para um mergulho.
e misturas-te no mar de vácuo onde flutuam os estilhaços da nossa frágil ilha.
eu fico a ver-te submergir, a sós com a imagem dos teus ombros reflectidos na transparência onde nos amámos.
a memória é eterna como nenhuma ilha.

sábado, 13 de outubro de 2007

África

este amor foi bruma e turvo horizonte, nuvem e esparsa folhagem de espuma, firmamento eufórico de estrelas sem brilho.
e acendeu-se depois, numa colecção de instantes a descrever um arco de ogiva perfeita do meu coração ao teu.
entre as fagulhas que dançaram nas tuas ancas e o medo calado, sem espessura, que se agarrava às paredes durante a noite, nasceram cristais de ternura.
e eu cravei-os no teu peito, misturados com palavras adolescentes e reflexos de beijos labirínticos.
disseste: nenhuma sede me embriaga.
e eu disse: o meu corpo é escasso para os teus lábios.
mas os nossos batimentos cardíacos eram já uma percussão ensurdecedora, com a tua áfrica a sacudir o meu inverno e as minhas linhas de sal a riscar o teu fôlego.
hoje amo-te tão claramente que a luz dos meus olhos no espelho ameaça cegar-me a qualquer momento.
um dia mando gravar-me inteira num bago de arroz, para viver para sempre entre as tuas missangas.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Crêperie

temperavas de sombras e ameaças os crepes da tarde.
um remoinho de raiva girava no teu estômago, tômbola febril das tuas certezas.
subitamente tinhas descoberto que não havia mais do que um mar monótono ao alcance das tuas mãos. querias mais. e não podias calar-te.
tinhas-me pedido doçura. eu dei-te a escória de um vulcão já extinto, a minha amarga realidade repetida até à náusea.
não ensaiaste o fim. mas nessa tarde cozinhaste o avesso do tempo em que refulgimos num recheio de bechamel.
quando cheguei a casa serviste-me os crepes num desvelo cabisbaixo que quase me seduziu. falaste da conta da electricidade e do guarda-nocturno, lavaste a frigideira, tiraste o avental, desligaste a televisão.
depois disseste: parto.
em voz alta, disse eu.
uivaste comigo uma última vez e os meus dedos percorreram o teu rosto num adeus aromático.
levaste o pantagruel quando partiste.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Passagem

lambo-te a dobra dos joelhos, o desenho das costelas acima da cintura, o côncavo das virilhas, o convexo do sexo. desfaço-me na tua nuca, refaço-me no teu peito, embrulho-me nos teus braços. e viajo para fora de mim dentro de ti.
tu entras nos meus ouvidos tornada sopro de ocarina, danças-me nas ancas ressoando como darbucas árabes, dás-me a beber orgasmos aromáticos de manteiga de caju.
e ensinas-me a arte de perder.
perder coisas, perder pessoas, perder o rumo, perder a cabeça, perder-me enfim. e aprendo a ganhar tempo com as mãos caminhantes nas linhas tropicais do teu corpo.
depois levo-te à estação, de coração perdido na antecipação da saudade.
quero repetir-te o desejo fremente que me consome, traduzir-te em palavras o amor que já sabes, fazer da minha voz um lenço de seda para enrolares ao pescoço numa toada de murmúrios circulares como olhos.
mas tu dizes: não fales.
e eu vejo-te partir em tortura de silêncio.