quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

No alpendre

naquela tarde solarenga, comias nêsperas excessivamente maduras com o ar grave de quem resolve os mistérios do universo. o golden retriever enroscado aos teus pés respirava profundamente, como se dormisse. e havia pólen quase visível a estremecer no ar espesso à volta dos teus cabelos.
eras a imagem pura da beleza e eu absorvia a tua presença inteira, recostada na cadeira de baloiço do alpendre. dormitava de livro aberto à frente, ocasionalmente juntando sílabas e ideias e versos na lenta passagem das horas.
às vezes cruzava as pernas e fechava os olhos. às vezes inclinava-me ligeiramente para a direita, apoiada no meu mais frágil flanco, para conseguir ver-te melhor. e às vezes pegava no copo de gin e levava-o aos lábios em silêncio.
e o mundo corria entretanto, fora de nós e do nosso tempo, aquele tempo em que já mal falávamos porque tudo era límpido e concreto e todas as palavras desnecessárias.
o amor é um direito, disseste tu entre duas nêsperas.
só então percebi o teu ar grave de quem resolve os mistérios do universo. mas limitei-me a sorrir, mordendo o pólen do éter e sentindo-o estalar na frescura do gin, rente aos dentes.
e depois fechei o livro.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Flores

acreditavas nesse magro amor que te davam, terra de calhaus e areia e espuma em infinitas formas aleatórias transbordando-te das mãos.
para pouco te servia mas sempre te parecia melhor que o léxico líquido que antes consumias insone nas noites adormecidas, para acordares o dia com mais um poema desumanizado.
vivias naquela linha muito fina, perfeitamente direita e firme, que rasga o éter e separa a luz da escuridão. uma estreitíssima faixa de chão árido onde a custo te equilibravas, olhando sempre em frente, não fossem as cores do mundo desviar-te do teu conforto sem segredos.
e cada sussurro meu te soava como um grito, cada aceno te invocava uma queda. e todos os mistérios te inconformavam, todas as volúpias te iravam.
e tudo te era gigantesco e insuportável como o inverno nas montanhas do norte. tal como me era gigantesca e insuportável, a mim, a tua distância.
então eu disse: há flores preciosas no interior do céu.
quero vê-las, disseste tu.
e por uma vez não pensaste. abriste as mãos de calhaus e areia e espuma e desceste ao meu chão quase fértil, dourado como a aurora e religiosamente pagão.
e voaste comigo numa chuva de pétalas e silêncio bom.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Agora

nos teus olhos certeza, nos teus gestos hesitação.
na tua sombra breves passos, na tua carne o longo silêncio do tempo a passar.
no teu estômago nós marinheiros, no teu coração raízes vermelhas sem terra onde crescer. na tua pele um redondo agasalho, na tua boca um vértice de razão.
na tua viagem o meu destino, no teu espelho a estrada para um sonho meu.
chegas e paras. bates à porta com os nós dos dedos, de joelhos trémulos e pose teatral, à beira da acção.
deixa-me entrar, dizes.
agora, digo eu.
à poeira táctil do nossos abraço lanço então o meu medo. calor e frio entrelaçam-se, tão íntimos como os nossos membros despidos.
e nesta cruel harmonia, que em minutos se apaga como tudo o que é perfeito, refreio-te o pensamento e vejo-o planar em redor dos meus ombros, desligado de ti mas ainda verbal, frágil como uma lágrima oculta, lírico como um tumulto justo, espreitando as palavras que não profiro.
em ti me escrevo agora na caligrafia da música. o meu poema avança sobre ti numa cicatriz operática, enredo em quatro actos ornamentado a linhas de seda e árias sem refrão.
até que o pano caia, as tuas sábias mãos hão-de inventar-me em flores resplandecentes e renascer-me em cascatas de veludo.
e quando estalar a ovação estaremos já num âmago só nosso, nem meu nem teu, uma entidade nova, tão privada e interior como a linfa e a ilusão.
e será agora. a unidade no instante concreto do amor.
ópera em filigrana.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

O embuste

tinhas os olhos sem sorriso da garbo em frente à cama, a grão e sépia, sob vidro anti-reflexo.
era para eles que te despias, de costas para mim. para eles que te deitavas e sorrias. por eles que suspiravas às esquinas da vida.
como podia eu competir com aqueles olhos imortais e sem idade? eu, toda de carne e todos os dias a caminho da morte? eu, toda sorriso virado para fora? eu, toda imperfeita e humana e em permanente mutação?
a minha existência em ti é um embuste, disse.
és o meu ser no mundo, disseste tu.
e apagaste a luz e deitaste-te ao meu lado, como todas as noites.
e tapaste-me a boca com beijos, para que me calasse. e tomaste o meu corpo como se fosse um prolongamento do teu.

no escuro, embrulhei as minhas dúvidas na tua pele.
e resumida ao tacto fui tua mais uma vez.