terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Aterrada

a voz dos teus olhos é profunda como raízes, oiço-a
a arranhar-me as gengivas com nitidez nunca esperada enquanto
refaço laços e arrumo a vida.

quis ser para ti um livro que comigo escrevesses,
e a cada dia ler-te de volta, num entendimento a tinta
impressa nas veias e nos ossos,
cinza e prata e sangue sobre papel vivo,
cada instante a crescer até tudo cobrir.

mas o tempo não pode medir-se quando o coração alcança.
ruidoso demais, avança sem piedade e congela a fé.

os ponteiros do relógio como pestanas alongam-se.
a passagem das horas como cigarros queima.
e o meu corpo consumado altera-se, abraçado à memória
contra o lençol.

de sonhos cortados às fatias faço agora versos
que logo definham naquele ambíguo vagar de coisa intangível.
e reinvento o teu coração, que mais não fez senão esperar-me.

sei que é a vez do meu se escrever.
e olho-o aterrada.

o amor está onde deve?

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Coágulo

vens de sobretudo altivo e botas enlameadas
(chove e tu nunca evitas o baldio,
os olhos continuam expressivos
mas eu desisti de tentar entendê-los,
a boca desenha-se em mulheres fantásticas e câmaras ao ombro,
retratos a preto e branco, artes de mãos falantes,
homens enobrecidos pelo sofrimento,
canções.
tens de dizer a cada dia o tanto que apreendes,
não importa se te ouvem. houve um tornado, dizes,
soubeste pelas notícias, no táxi para casa,
o universo desmorona-se.

corres os cortinados, abres as janelas, inspiras o tejo,
imaginas crianças a rir e a brincar e o velho pastor alemão na casa dos teus pais. escutas o latido das gaivotas,
uma buzina de automóvel
(instintivamente conferes o semáforo,
e pensas que preferias chopin.
eu penso que seria maravilhoso se a vida tivesse
a cor dos olhos do sinatra
(mas são os teus que não me saem da cabeça.

fechas as janelas e pedes-me para tocar.
mil gradações de cinza envolvem os nossos corpos,
tu passas a mão pela colecção de lenços e arrumas o canivete desleixadamente deixado sobre o carrinho de chá.
eu penetro em nocturnos mistérios
(por meios tons, andantes e acordes largos,
guiando-te lentamente ao teu âmago
como só no amor.
então aconchegas-te à música que te dou.
a copiosa narrativa interior abraçada ao sublime prazer
de simplesmente sentir, o tule e as sapatilhas definitivamente guardados no fim da memória, as ilusões caladas
pela experiência, as frustrações queimadas
como o leite creme da tua infância.

e forma-se um coágulo de magia onde és feliz.

amanhã ajustamos contas.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Constância

os girassóis impressionistas ainda me impressionam
e a abstracção expressionista engole-me o fôlego,
mas nem o bach do gould me convence
que há virtude nas variações.

portanto não estranho
que oiça os teus passos quando por acidente me encontro
com o andar dengoso de um gato.
ou que o teu precário sorriso se sobreponha
ao ritmo nervoso dos pardais
que vejo voar ao fim da tarde.

no resto do tempo canto a alegria
enquanto redijo enigmas como quem faz listas de compras:
luzes douradas em alvas páginas,
ignóbeis sacrifícios sem justificação.
e as soluções sempre à espreita.

é o meu tempo, todo meu.
sem lugar para prantos diluvais ou remorsos,
nem rumo para além dos brindes bêbados
que a mim mesma entrego.

no final pergunto-me se algum dia aprenderás
a mentir na minha presença e me entenderás a constância.
antes que este pão que amassaste sirva de pedra a novo templo.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Digestão

nesta digestão de insensatos prazeres
absorvo o que me deste como se fosse lisonja. e guardo a afronta embrulhada em salmonelas no revoltoso estômago dos desgostos.
sei bem para onde vou
e que o ódio também voa, dizes.
e eu digo,
aterra-me em fogo e renascerei chama. ateia-me de mar e voltarei onda. afoga-me em poeira e tornarei tornado. jamais me matarás.
tu não acreditas.
lembras-te ainda do tempo em que o tejo era novo e as ciclovias se abriam em flores enquanto pedalavas. e das esplanadas repletas de risos, da boémia inócua dos teus amigos, dos filmes que revias para lhes mudares as personagens, de credos vagos com sabor a essência, do repúdio à nostalgia, da fé no futuro.
mas agora reparas apenas nas sombras
e não encontras senão dejectos quando estendes
os olhos pela cidade e te abraças ao sol.
serve-me uma nova fantasia, dizes.
e eu digo,
aos teus lábios só chegarei o cálice do fracasso e a suave mentira por que anseias, depois de amanhã.

o teu corpo que longo tempo foi de outra paragem não me durou mais do que se demora o amor na boca enquanto diz a vida inteira. abandonou esta casa impregnada de ti por seiscentos e setenta dias onde os dias caem como folhas de outono,
sem ruído e leves, a alcatifar o meu breve caminho,

e hão-se cair até não haver mais.
ou até tu me trazeres uma nova fantasia,
depois de amanhã verdade.