sexta-feira, 24 de abril de 2009

Onde vou

onde vou ganho raízes
que mesmo sem rega
e em solo que estéril se alardeia
continuam a crescer para o âmago da terra,
enquanto os atrofiados ramos se recolhem
e as folhas em caracol se acastanham
e o tronco seco encolhe sem se vergar.

onde vou ganho raízes.
que o silêncio não mata. só adoça.
e a saudade não corrói. apenas aperta.

esta definhada árvore em permanência
jamais poderá abraçar o sol.
mas reflectirá sempre o seu calor,
alimento de vida. o único essencial.

onde vou ganho raízes
e engulo na noite as luzes que tremem,
as luzes na baixa, as luzes no tejo, as luzes na estrada.
tão rápidas como estilhaços.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Ao espelho

subo à soberba montanha do teu ciúme
vulto de sangue tornada
sem futuro além deste movimento ascendente
que te procura só para te negar

depois do conforto o esqueleto exausto
depois da música o tambor estéril
depois da leveza a lava tóxica
depois da poesia o silêncio repetido

depois do amor o concreto final


o espelho não reflecte o vazio
mas reconhece a perda

terça-feira, 21 de abril de 2009

Não sei se

em cortejo pelas pedras
vão as margens das tardes em que quero morrer
são frias são sujas são de mal
e calcam a calçada que escorrega
gorda de banhas e óleos
como o tempo que me foge.

os barcos na ilha apodrecem
tranquilamente.
as raízes na terra choram
humanamente.
e a vida passa como partem os pássaros quando arrefece.

abrem-se escadas à frente dos meus passos.
não sei se as suba se as desça
não sei se permaneça.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Cores

vejo as cores esbaterem-se, diluídas no éter celeste que pela manhã me enlaça. é a minha única hora lúcida, sem remédios do diabo nem venenos divinos, só cheiro a chuva e saudade,
e a ternura toda escondida na dobra do lençol.
poderei renunciar ao meu breve casulo, pergunto-me.

sinto ainda a tua respiração nos ombros, no pescoço o aroma dos teus beijos, nos ouvidos o rumor da tua pressa, nas mãos o teu corpo a tremer.
e um arrepio atravessa-me as costas como um chicote.
então deslizo para fora da cama e abro a janela num gesto teatral.
há vapores de desejo que se elevam, tornados materiais quando os inspiro. têm a sua densidade própria, mas facilmente se moldam aos caminhos do meu interior. e tomam livremente o seu espaço dentro do exíguo espaço que me resta depois dos sonhos da noite. e assolam-me. e indagam-me.
e embriagam-me mais uma vez.
desconexa dou-me então ao mundo,
tornada de novo mulher com cabeça
e destino nenhum para além da linha de partida há muito riscada na minha pele pelo teu punho.
mas por vezes o medo rasga-me a alma.
eu coso-a e refaço-me, coso e aplico-me mais uma lição.

e vejo as cores recuperarem vida nas minhas manhãs.
e acredito nelas e em nós.
mas continuo sem perceber por que o nosso amor
às vezes pende para a terra
como se nunca voasse.