quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Pensamento

o amor não chega.
o amor não chega para mudar a mulher.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

A bela distante

garbosa e diáfana caminhas para o vazio.
és a bela filha de afrodite esculpida em bronze, coração e entranhas e tudo.
carregas o perfume do mundo e a música do vento nos cabelos, o céu à volta dos lábios, a semente do amor nos olhos.
tens um lenço de cetim atado ao pescoço altivo e a longa estrada a partir da praia para percorrer.
foges do que os infelizes procuram, uma e outra vez, até não restar um minuto de sal nos teus olhos, até quase tocares a cruz da tua morte.
eu amo-te de longe, como amei a vénus nos uffizi, imaginando que a tua pele é uma planície de espigas e papoilas e a tua voz um rumor de pura saudade.
mas o vinho permanece o meu elemento.
sem perder de vista o mar, acerto o passo com as vindimas e destilo-me num pequeno cálice, de ombros imponentes e nuvens a esvoaçar-me no peito.
mesmo quando visitas a minha rua, quando vens respirar o iodo e as canções marítimas à minha porta, verificar a mutação dos rochedos e o som sentimental dos búzios deste lado da vida, e depois prossegues o teu caminho a caminho de nada.
dizes: nenhum beijo retocará a minha boca.
e caminhas.
eu vejo-te e aos meus ossos despenhados da janela, misturados na areia por onde passas.
sustenho a respiração e recolho a casa.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Escrevo contra

a memória é o alvo de todos os meus gestos, de cada palavra que fere e sangra e acende rastilhos de flores e de pedras no meu coração enrugado.
longe está a pequena ilha da infância e a casa plural da juventude, o tempo dos suspiros e das promessas.
já não há asas nas minhas lágrimas e o silêncio escorre pelas paredes. são irmãos, o meu choro parado e a minha reserva, insone e tagarela como as árvores em dias ciclónicos.
encho-a com versos, de boca selada e olhos em branco.
e as estrelas partem da minha noite.
afinal os sonhos têm idade, dizes.
e eu digo: guarda-os em cápsulas de vidro.
tomo as rédeas ao arco-íris do meu passado e sinto-o a abrir os braços para me consolar. mas estilhaça-se num instante, pela acção da tua imobilidade à minha frente.
e ao que flui na sólida tinta do quarto retiro a pontuação. que atiro ao caderno como quem veste muros.
escrevo e escrevo e escrevo. contra o esquecimento.
hoje só a ideia de morte me cala.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Pequenos deuses

foste um trinado de azul, vaidoso como narciso.
arrepiaste-me as costas, trancaste-me em casa, tomaste os espelhos. e eu, nas horas finais da tarde, fitando um horizonte de nucas de raparigas em fila para o autocarro, brotei lírios que derramei no jardim desalinhado.
depois foste um sussurro de praia, andrógino como dionísio.
sopraste-me amor, seduziste-me por capricho, brindaste ao prazer sem regra.
e eu, na noite estrangulada de estrelas, perdida em cogitações circulares, aprendi as tuas receitas caseiras, empadão de gestos inconsequentes e pudim de sorrisos falsos. sem prazo de validade.
finalmente foste um grito de seda, eloquente como hermes.
abraçaste-me devagar, desviaste-me do caos, abriste-me ao silêncio. e eu já mal respirava, sob a vigilância fria dos teus olhos virados para dentro.
soçobrei aos teus pés, rubra de raiva, lívida de medo, asfixiada de paixão. hoje tenho crianças eternas a crescer-me no peito, deuses pequenos a seguir-me os passos, brisas amenas a envenenar-me as veias.
os meus segredos são só meus. e o sarcasmo a minha glória.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Açúcar

sobravam-te os sonhos nas mãos e os intentos na boca, pura como o orvalho nas folhas do inverno.
nos cabelos navegava-te o aroma do amor consumado.
mas namoravas em disfarçado desespero, a tua nudez nunca te despia.
quando te vi cantando à deusa, indiferente ao tumulto das multidões e ao mistério das palavras, respiravas em murmúrios dançantes, enrolados como novelos de lã no espaço aberto da tua varanda virada a oeste. e tinhas o peito a desfazer-se em caramelo, numa doce e espessa massa deslizante, suavemente pintada de luar dourado, que mais ninguém via senão eu.
na fronte inchada de orgulho, exibias as vontades satisfeitas. e de todos escondias os desígnios desfeitos e a identidade da carne.
havia rugas à volta dos teus olhos, mas não eram imperfeitas como os sulcos dos barcos no mar. só tu sabias o sabor do sangue frágil do tempo e o termo certo do sol.
conduz-me à paz, disseste.
e eu disse: o meu ombro é um lago.
então pousaste a palma na água parada e em mim depositaste os sonhos que já não te cabiam. estancaste o açúcar em ponto de areia e recolheste ao interior da casa.
eu fiz um ninho na varanda virada a oeste.
e voltei-me para dentro de ti.