quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Pensamento

o amor não chega.
o amor não chega para mudar a mulher.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

A bela distante

garbosa e diáfana caminhas para o vazio.
és a bela filha de afrodite esculpida em bronze, coração e entranhas e tudo.
carregas o perfume do mundo e a música do vento nos cabelos, o céu à volta dos lábios, a semente do amor nos olhos.
tens um lenço de cetim atado ao pescoço altivo e a longa estrada a partir da praia para percorrer.
foges do que os infelizes procuram, uma e outra vez, até não restar um minuto de sal nos teus olhos, até quase tocares a cruz da tua morte.
eu amo-te de longe, como amei a vénus nos uffizi, imaginando que a tua pele é uma planície de espigas e papoilas e a tua voz um rumor de pura saudade.
mas o vinho permanece o meu elemento.
sem perder de vista o mar, acerto o passo com as vindimas e destilo-me num pequeno cálice, de ombros imponentes e nuvens a esvoaçar-me no peito.
mesmo quando visitas a minha rua, quando vens respirar o iodo e as canções marítimas à minha porta, verificar a mutação dos rochedos e o som sentimental dos búzios deste lado da vida, e depois prossegues o teu caminho a caminho de nada.
dizes: nenhum beijo retocará a minha boca.
e caminhas.
eu vejo-te e aos meus ossos despenhados da janela, misturados na areia por onde passas.
sustenho a respiração e recolho a casa.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Escrevo contra

a memória é o alvo de todos os meus gestos, de cada palavra que fere e sangra e acende rastilhos de flores e de pedras no meu coração enrugado.
longe está a pequena ilha da infância e a casa plural da juventude, o tempo dos suspiros e das promessas.
já não há asas nas minhas lágrimas e o silêncio escorre pelas paredes. são irmãos, o meu choro parado e a minha reserva, insone e tagarela como as árvores em dias ciclónicos.
encho-a com versos, de boca selada e olhos em branco.
e as estrelas partem da minha noite.
afinal os sonhos têm idade, dizes.
e eu digo: guarda-os em cápsulas de vidro.
tomo as rédeas ao arco-íris do meu passado e sinto-o a abrir os braços para me consolar. mas estilhaça-se num instante, pela acção da tua imobilidade à minha frente.
e ao que flui na sólida tinta do quarto retiro a pontuação. que atiro ao caderno como quem veste muros.
escrevo e escrevo e escrevo. contra o esquecimento.
hoje só a ideia de morte me cala.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Pequenos deuses

foste um trinado de azul, vaidoso como narciso.
arrepiaste-me as costas, trancaste-me em casa, tomaste os espelhos. e eu, nas horas finais da tarde, fitando um horizonte de nucas de raparigas em fila para o autocarro, brotei lírios que derramei no jardim desalinhado.
depois foste um sussurro de praia, andrógino como dionísio.
sopraste-me amor, seduziste-me por capricho, brindaste ao prazer sem regra.
e eu, na noite estrangulada de estrelas, perdida em cogitações circulares, aprendi as tuas receitas caseiras, empadão de gestos inconsequentes e pudim de sorrisos falsos. sem prazo de validade.
finalmente foste um grito de seda, eloquente como hermes.
abraçaste-me devagar, desviaste-me do caos, abriste-me ao silêncio. e eu já mal respirava, sob a vigilância fria dos teus olhos virados para dentro.
soçobrei aos teus pés, rubra de raiva, lívida de medo, asfixiada de paixão. hoje tenho crianças eternas a crescer-me no peito, deuses pequenos a seguir-me os passos, brisas amenas a envenenar-me as veias.
os meus segredos são só meus. e o sarcasmo a minha glória.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Açúcar

sobravam-te os sonhos nas mãos e os intentos na boca, pura como o orvalho nas folhas do inverno.
nos cabelos navegava-te o aroma do amor consumado.
mas namoravas em disfarçado desespero, a tua nudez nunca te despia.
quando te vi cantando à deusa, indiferente ao tumulto das multidões e ao mistério das palavras, respiravas em murmúrios dançantes, enrolados como novelos de lã no espaço aberto da tua varanda virada a oeste. e tinhas o peito a desfazer-se em caramelo, numa doce e espessa massa deslizante, suavemente pintada de luar dourado, que mais ninguém via senão eu.
na fronte inchada de orgulho, exibias as vontades satisfeitas. e de todos escondias os desígnios desfeitos e a identidade da carne.
havia rugas à volta dos teus olhos, mas não eram imperfeitas como os sulcos dos barcos no mar. só tu sabias o sabor do sangue frágil do tempo e o termo certo do sol.
conduz-me à paz, disseste.
e eu disse: o meu ombro é um lago.
então pousaste a palma na água parada e em mim depositaste os sonhos que já não te cabiam. estancaste o açúcar em ponto de areia e recolheste ao interior da casa.
eu fiz um ninho na varanda virada a oeste.
e voltei-me para dentro de ti.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Senso comum

dormes como uma ave de rapina, em alerta.
ages sem maquilhagem e mentes para ganhar o mundo.
não és o que sonhei mas és um sonho meu.
e vives comigo.
lá fora arrefece.
a chuva caminha lentamente pelas nossas madrugadas. as minhas insónias no terraço desaparecem, o teu espesso fulgor desfaz-se em espuma.
dezembro é já ali ao fundo e eu decido escrever-te.
procuro a waterman mas paro no teu quarto para rever aquela paz que de noite te sobe ao rosto e esculpe rugas doces junto às tuas têmporas.
a minha presença acorda-te mas não te demoras nos meus olhos.
neste momento à beira do inverno és só um sorriso de passagem.
e queres voltar à gruta dos sonhos.
amo-te muito, dizes.
e eu digo:
o amor não tem medida.
ou amas ou não amas. e é tudo.
mas tu já adormeceste.
sei que vais continuar a amar-me muito. até me arruinares.
preferia que me amasses por muito tempo, apesar das minhas arestas.

sábado, 17 de novembro de 2007

Por estes dias

sou uma cordilheira de nervos na tua pele, dizes.
por estes dias posso ouvir-te mas não acredito em ti.
começo a escalar-te no fundo da minha memória e no teu cume encontro-te a cortar pingos de chuva, a montar gargalhadas e a despir olhos.
depois saio para dentro de casa e deixo-te no jardim do que foste.
à lareira paro de pensar e observo onde moro.
tenho um espelho saudoso da minha juventude que me lembra a tua saudade, um pente de madeira como o rapaz das mentiras e um cinzeiro de pedra para apagar os dedos.
ligo ao jardineiro e deixo-me dormir.
o nosso tempo é de abraços e ampulhetas de areia movediça. é de amor barulhento e luar esquivo.
nos outros dias caem-me beijos para o chão.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Ciclo

na sombra estreita do chicote, com a cara encostada aos mosaicos gelados da cozinha e as pernas em abandono, recupero lentamente os sentidos.
levanto-me a custo, de cabeça em vorazes vagas e asas paradas.
despejo no ralo do lava-loiça as lágrimas que deixaste no dedal de prata e tiro a tua fotografia da almofada dos alfinetes.
num compartimento da caixa de costura, entre a tesoura e os colchetes, arrumo as tuas contas. e na primeira gaveta da cómoda escondo os teus olhos com roupa interior.
ontem à noite, depois de partires, o copo esvaiu-se em whisky na minha boca e fixou-me o pensamento à tua ausência.
mergulhei para cima e colidi com um cometa. ainda tentei agarrar-me a uma nuvem, mas ela desfez-se-me entre os dedos. lembrei-me do teu riso por momentos, a viajar num autocarro de dois andares e muitos segredos.
e fiquei a ouvir a lua a passar, num rasgo de genuína humanidade.
hoje desperto de pregos no esterno e agulhas no estômago.
meio termo entre árvore e pássaro, em voo inerte desapareço.
amanhã renasço-me em sangue, rente ao teu osso.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Sala de espera

extermino as horas do universo com as palavras que invento nesta sala de espera contígua à razão, virada a este para o quarto onde nos demos e a oeste para a varanda do silêncio.
cada manhã pinta-me um cabelo de branco e cola-me mais um milímetro da face à face da morte, gelada como a camisa que me veste enquanto te espero.
abro os olhos no vazio e vejo-te a lavar as mãos à torneira e a cruzar as pernas no sofá e a bater ovos em taças de vidro e a repetir um mundo de gestos quotidianos que me falham como me falha a voz quando te abraço.
com o teu nome bordado no peito, emaranhada em exuberantes fragrâncias que tanto doem como consolam, sento-me na sala de espera a tecer o eterno manto de saudade que hei-de abotoar sobre a camisa quando o inverno chegar.
torço os dedos e entorto a cabeça, arranco a pele e desmancho o esqueleto.
e cavo trajectos impossíveis nos velhos corredores do tempo.
e paro o coração voluntariamente.
em vão.
entre as mesas de revistas excessivamente manuseadas e as cadeiras vermelhas, arrumadas junto às paredes, assobias-me melodias assombrosas e agigantas-te no éter, até cobrires o espaço todo e soares na música de todas as orquestras, as dos pássaros e as outras.
então verto os meus sonhos em verso para dentro da tua memorável boca e beijo-te de cor. e guardo a impaciência na juventude. e bebo à esperança pelo copo da noite. e encaro a verdade. e rasgo o pensamento a sorrir em frente ao espelho.
envaidece-me o teu amor. mas a espera faz-me chorar.

sábado, 27 de outubro de 2007

Ascensão

eu podia ser o teu ringue de patinagem, o teu anjo, o teu falcão. entrar dentro do teu cérebro como uma ária de wagner e atravessar escalas, do rumor ao grito.
podia ser um suspiro de luz na tua noite, um sonho de laranja dentro das tuas tardes, uma harpa ajoelhada às tuas manhãs. e comprar-te ociosos domingos todos os dias.
mas não podia ser a tua pele.
nem a tua voz.
o teu peito inflamou-se quando soubeste a verdade.
descobriste as cores breves do meu mundo a rodopiar em espirais cruzadas nas planícies dos cometas e voltaste a desejar que te vestisse, que cobrisse a tua carne com o meu engenho e te deixasse falar pela minha boca.
mas não tornaste a pedir o impossível.
guardaste o relevo dos meus sinais na ponta dos dedos e olhaste-me de rosto inclinado para sul, sem sorriso, íntimo ao escarlate das chagas do tempo.
e então disseste: conheço um atalho para o teu coração.
e eu disse: em júpiter respiramos amor.
estendi-te a mão e ascendeste comigo.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Península

uma estrela reluz na tua boca e salpica-me os olhos através do azul que flutua acima de todas as coisas.
por estes dias somos imagens paralelas, projectadas uma na outra, a beijar o sol e a engolir o luar, enquanto as montanhas crescem e as folhas caem e o mar treme e as pedras do chão se misturam com o pó das casas.
mas não há fôlego de vento que nos gele o fulgor, ponteiro de relógio que nos distraia do sonho, estrada interminável que nos desvie da viagem.
os nossos sabores procuram-se às cegas nas madrugadas suplicantes da saudade.
dizes: vem.
e eu digo: sempre.
atravesso o cosmos mutante, o mistério da vida, o inefável, o inexplicável, o infinito, o desconcerto do tempo, o desacerto da lonjura. e vou.
tu desmanchas a sólida solidão das horas com um sopro elíseo e inscreves cada textura do teu mundo na minha pele feliz.
e eu exilo-me da realidade na península do teu corpo, lá onde a tua carne continental acaba e começa o oceano flamejante do prazer.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

A ilha

o perímetro dos meus passos é esta ilha de vidro que há séculos se parte. cada dia encurta a área para onde caminhar.
e a escassez de chão sedentariza-me.
do meu triângulo ao relento, vejo-te remar na direcção dos sulcos intransitáveis das ondas, esperando alcançar o coração do litoral.
às vezes voltas à noite, outras não.
na estação das chuvas assinalas o regresso com uma música líquida que te precede no cais. com o sol nunca vens.
mas um dia decides parar para um mergulho.
e misturas-te no mar de vácuo onde flutuam os estilhaços da nossa frágil ilha.
eu fico a ver-te submergir, a sós com a imagem dos teus ombros reflectidos na transparência onde nos amámos.
a memória é eterna como nenhuma ilha.

sábado, 13 de outubro de 2007

África

este amor foi bruma e turvo horizonte, nuvem e esparsa folhagem de espuma, firmamento eufórico de estrelas sem brilho.
e acendeu-se depois, numa colecção de instantes a descrever um arco de ogiva perfeita do meu coração ao teu.
entre as fagulhas que dançaram nas tuas ancas e o medo calado, sem espessura, que se agarrava às paredes durante a noite, nasceram cristais de ternura.
e eu cravei-os no teu peito, misturados com palavras adolescentes e reflexos de beijos labirínticos.
disseste: nenhuma sede me embriaga.
e eu disse: o meu corpo é escasso para os teus lábios.
mas os nossos batimentos cardíacos eram já uma percussão ensurdecedora, com a tua áfrica a sacudir o meu inverno e as minhas linhas de sal a riscar o teu fôlego.
hoje amo-te tão claramente que a luz dos meus olhos no espelho ameaça cegar-me a qualquer momento.
um dia mando gravar-me inteira num bago de arroz, para viver para sempre entre as tuas missangas.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Crêperie

temperavas de sombras e ameaças os crepes da tarde.
um remoinho de raiva girava no teu estômago, tômbola febril das tuas certezas.
subitamente tinhas descoberto que não havia mais do que um mar monótono ao alcance das tuas mãos. querias mais. e não podias calar-te.
tinhas-me pedido doçura. eu dei-te a escória de um vulcão já extinto, a minha amarga realidade repetida até à náusea.
não ensaiaste o fim. mas nessa tarde cozinhaste o avesso do tempo em que refulgimos num recheio de bechamel.
quando cheguei a casa serviste-me os crepes num desvelo cabisbaixo que quase me seduziu. falaste da conta da electricidade e do guarda-nocturno, lavaste a frigideira, tiraste o avental, desligaste a televisão.
depois disseste: parto.
em voz alta, disse eu.
uivaste comigo uma última vez e os meus dedos percorreram o teu rosto num adeus aromático.
levaste o pantagruel quando partiste.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Passagem

lambo-te a dobra dos joelhos, o desenho das costelas acima da cintura, o côncavo das virilhas, o convexo do sexo. desfaço-me na tua nuca, refaço-me no teu peito, embrulho-me nos teus braços. e viajo para fora de mim dentro de ti.
tu entras nos meus ouvidos tornada sopro de ocarina, danças-me nas ancas ressoando como darbucas árabes, dás-me a beber orgasmos aromáticos de manteiga de caju.
e ensinas-me a arte de perder.
perder coisas, perder pessoas, perder o rumo, perder a cabeça, perder-me enfim. e aprendo a ganhar tempo com as mãos caminhantes nas linhas tropicais do teu corpo.
depois levo-te à estação, de coração perdido na antecipação da saudade.
quero repetir-te o desejo fremente que me consome, traduzir-te em palavras o amor que já sabes, fazer da minha voz um lenço de seda para enrolares ao pescoço numa toada de murmúrios circulares como olhos.
mas tu dizes: não fales.
e eu vejo-te partir em tortura de silêncio.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Encantamento

vivi às cegas, desconhecendo o relevo do mapa da tua aldeia. na floresta, segura de mãos presas à crina do cavalo, fantasiando correntes de ar sob o sol eternamente a pique, a sós com os meus pensamentos e a lança romba, de corpo fechado e contos de reis e rainhas nas algibeiras.
tu habitaste a impossível tarefa de ser feliz para sempre no teu castelo de bruma, entalado entre a igreja matriz e a taberna ébria. durante anos jogaste às escondidas nos claustros, contando mil vezes até mil, à sombra das oliveiras e do riso contagioso das crianças. dormiste de seda, sonhaste algodão, frequentaste galas, atiraste moedas ao poço dos desejos sem saber o que desejar.
e não me adivinhaste.
mas um dia o infernal fogo da realidade empurrou-me da floresta. perdi o cavalo e os pensamentos, enterrei no peito a lança que há muito não me servia e sangrei à tua porta de algibeiras vazias.
corre uma brisa no teu perfume, disseste.
e eu disse: dou-te este eco do vento.
hoje danças nos meus olhos, numa sensual ondulação de ritmos tribais, que os petrifica e humedece.
despes-te na minha boca, deixando caídas peças de roupa à toa, entre a língua e os dentes.
espalhas-te pelo meu rosto em matizes de cores celestes, tingindo de brilhos novos os velhos desenhos das minhas feições.
e eu reparo que a tua existência em mim é uma pintura sonora, de sabor táctil e veias salientes, onde há magia sem varinhas de luz e desnecessários sapatos de cristal.
não o lamento nem o celebro. deixo-te ficar.
encantada.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

O colar

havia um rio ao fundo da rua e tu pedalavas devagar na tua bicicleta, descrevendo arcos de sete cores entre as pedras da estrada para a cidade.
eu era uma flecha de fulgor acasalando com o centro do teu peito e lia realidades paralelas nos recados que me deixavas em cima da mesa do pequeno-almoço.
às vezes amachucava a folha do bloco de notas nas mãos vazias e estendia-me no tapete a imaginar o que o teu gato sonharia naquelas manhãs quentes no terraço, com o sol a bater-lhe nos bigodes.
mas na maioria dos dias limitava-me a espiar o namoro das árvores pela janela entreaberta. e esperava-te até à noite no meu mundo despido, languidamente enternecida pela memória do teu cheiro nos meus dedos.
certa madrugada trouxeste-me um colar de nuvens.
o céu é uma cortina teimosa, disseste.
e eu disse: não desistas.
no nosso beijo ergueu-se então o amor todo. a tua respiração susteve-se no espaço do meu abraço e o meu coração enrolou-se entre as tuas clavículas.
e eu cantei, com o pescoço adornado de um branco impossível.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Elementar

chegaste de sorriso posto, subtraído à cintilação do mar, e o passo etéreo de quem mal toca o chão enquanto anda. pareceste-me tão leve que quase consegui ver-te planar acima da calçada branca.
depois a seda rosada dos teus lábios no meu rosto levou uma fagulha de desejo às minhas sinapses em rodilha. e a tua voz entreteceu escalas oníricas em espiral na música ambiente.
num harmónico embalo de violinos e flautas, trocámos confidências e retalhámos passados como melancias, com a espontânea naturalidade que só se espera de quem há muito se espera.
mais tarde misturámos as mãos e os corpos, as linhas perenes e as rugas novas, as dúvidas e as subtilezas, os poros e os pigmentos da pele.
e então espreitei-te para dentro.
tu retraíste-te por um instante. arqueaste as sobrancelhas, franziste a testa, dilataste as narinas. e recostaste-te numa hesitação humana, tentando esconder a frágil nudez que descobri nos teus olhos, suaves como o feltro das mesas de jogo.
és o meu elemento, disse.
sou a tua curva de montanha, disseste tu.
eu derrapei no trovão quase imperceptível do teu amor, puxei o fio das minhas sinapses e atei-as a ti.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

O bar da pele

sou a bruma onde te perdes, o caminho por onde segues, a pulsação exacta dos teus exactos batimentos cardíacos, que em beijos se descompassam e em intermináveis órbitas me rodeiam como abraços.
sento-me ao balcão do bar da pele e peço-te a embriaguez de água e sal dos desejos que invadem a tua noite dormente.
e tu entornas rios de perfumes ébrios no meu copo e levas-me cânticos aos lábios, tornando-me uma melodia de prazer embrulhada no cosmos.
então sinto o teu olhar, copioso de sentidos como as folhas das árvores na aurora orvalhada, a entrar nos meus poros. e o teu sorriso lascivo a abrir-se como pétalas de girassol ao toque dos meus dedos solares.
e viras-me do avesso. e trocas-me os passos. e avolumas-te sob o meu peso. e entranhas-te nas minhas veias. e ondulas como bandeira ao vento no fôlego do meu corpo.
e és o amor em estado de tremor. a crescer, a crescer e a crescer, em direcção ao céu. e a perturbar o silêncio do universo.
eu acordo.
enquanto durmo estou desperta. no bar da pele que só nós conhecemos. onde entrámos pela porta dos sonhos.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Via láctea

pendurei um colar de terra ao pescoço. apertei uma língua de fogo entre as nádegas. pus uma mochila de ar aos ombros. envolvi a cintura num remoinho de água.
e entrei dentro do amor.
do interior desse imenso astro místico com sabor a transparência, espreitei de novo o mundo, seduzida pelos seus artifícios e cores, as suas leis desmedidas de espaço e tempo, a sua orquestra de metais soprados por bocas irascíveis, os seus idiomas e fragrâncias materiais.
e vi-te pela primeira vez.
dentro do amor só havia corredores despidos e tambores e a poeira de estrelas que te servi às colheradas, apenas um instante antes de te abraçar em silêncio para te levar.
mas tu puxaste-me no sentido contrário e começaste a contar-me histórias divertidas.
as sombras frondosas das árvores vigiavam-nos na noite e o teu riso intocável era um murmúrio do lado de fora, incapaz de transpor as portas e derrubar os muros e atravessar as vidraças, tal como eu fiz com a verdade ignóbil dos elementos espalhada pelo corpo, a verdade que depois depus aos pés do cosmos para ser tua.
por ti aceitei a gravidade, os relógios e os átomos, a força, a densidade, o trabalho, a vida. e a via láctea que te vestia os olhos inundou de luz o meu peito.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Agosto

em agosto o teu corpo reluzia, pungente das gotas de sal a irromper pelos nossos poros como lágrimas dos olhos.
na tua água deslizava a minha esperança, no meu suor borbulhava o teu desejo.
e nenhum grito se repetia nunca.
a tua língua conseguia ser algodão doce a derreter na minha língua. e eu via-me numa festa da minha infância de açúcar e carrosséis musicais.
a tua pele conseguia ser uma sinfonia a soar na minha pele. e eu ouvia-nos no tempo a pulsar, entre arquejos suspensos e sonhos interrompidos.
e éramos um mundo. e éramos livres. e sobre nós brilhava andrómeda, orion e cassiopeia nas suas imobilidades trémulas mas constantes, em tudo diversas do teu coração moribundo, à espera de consolo no calor da tarde, à espera de conforto no refúgio fresco da noite, à espera que os segredos incandescentes do céu se misturassem com a vida vermelha que te corria nas veias, delgadas como cordas de violoncelo.
à espera. até seres quase só indolência e sensação.
o trabalho está feito, disseste.
deixa-me as ferramentas, disse eu.
tu tiraste o coração e embrulhaste-o na saia de praia, juntamente com as estrelas que me ensinaste, antes de partires para a beira-mar.
então a tua forma diluiu-se no horizonte.
e assim te tornaste um aceno de mão aberta, a sobrevoar-me para sempre neste verão de areia e vento.

terça-feira, 31 de julho de 2007

O búzio

a conta-gotas subtraio água ao mar e despejo-a nos olhos, esféricas vasilhas onde guardo os desejos, molhados como mergulhos.
remendo o coração com outras vísceras e, a linhas de sangue, prego-lhe um botão de antártida, sólido como em tempos o ritmo da tua respiração no meu pulso.
às vezes os teus gritos caem nas minhas janelas, arranham a madeira dos caixilhos, desabam nos parapeitos, escorrem pelos vidros, imitam os círculos de voo das rolas em redor da casa.
e desviam-me por breves instantes do meu mundo sem época, nublado de gestos diluídos pelas artérias de espuma do tempo.
há carne e osso nas minhas lágrimas, digo.
e tu gritas na tua mordaça, quase em paz.
então vejo o rosto da terra onde te amei abrir-se num sorriso ébrio. e desenho um ponto final na tua luz, com as batidas do timbaland a ressoar nas paredes que dividem os corredores da minha memória em quartos contíguos, como enfermarias sobrelotadas.
assim me desvinculo de ti, estrangulada às mãos deste gelo que agora se multiplica nas vagas do oceano indeciso onde a minha fraqueza sobrevém.
e o búzio mudo revela-se enfim entre as minhas pernas.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Encontro

fomos amantes capazes de voar até sermos amantes a afundar-se, como ilhas de um império decadente, na brancura do colchão.
e então passámos a deslizar de corpo em corpo sem um arranhão na alma, como se acreditássemos na possibilidade de renovar, uma e outra vez, a única sintonia que conhecemos. como se assim celebrássemos esse amor único, todo nosso e secreto e muito antigo, que jamais esquecemos.
este é o passado que temos. já não precisamos dele. por isso empurramo-lo para abismos sensuais e poços de vazio.
mas ele permanece. nítido como nenhum presente, dizível como nenhum futuro.
e nunca passa. apaga-se em certas noites quentes.
mas acende-se de novo quando o sol se levanta e o inverno nos arrefece nas mãos.
ontem esbarrei em ti no intervalo do teatro.
levava a minha última lágrima presa ao fio do pescoço, tu vestias a personalidade germânica das terças e tinhas um saco de canetas ao ombro. olhaste-me com a doçura de um licor de ameixa, eu hesitei entre um sorriso ausente e um gesto de espuma de sabão.
já não cantas, perguntaste.
e eu disse: preciso dos teus ouvidos.
tu abraçaste-me naturalmente antes de regressares à plateia.
eu ofereci-te uma melodia breve com mil dedos dentro e cheiro a pólvora seca.
e um formigueiro de duendes ficou a vibrar no foyer.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

A oficina

avançavas apressadamente para lugar nenhum e eu arranquei-te a desolação da alma e a droga dos bolsos das calças.
num instante de brilhante demência, cosi asas aos teus ombros, colei desejos túrgidos ao teu cérebro e tatuei botas de couro nos teus pés.
tu caminhaste para mim com um gesto de fuga a serpentear-te nos braços e um sorriso quase heróico no rosto.
confio-te os meus dias, disseste.
e eu disse: limpo o pó às tuas noites.
puxei as persianas das janelas, cobri a tua fome com papel de parede às riscas, acendi o pavio do teu coração desconexo com versos de lume esculturais.
e conduzi-te à minha oficina para te refazer.
hoje vou vender-te em leilão. já vales tanto como um matisse.

sábado, 21 de julho de 2007

Sem virtude

não há virtude no que vejo neste quarto flutuante com chão de mar. o teu cabelo encaracola-se nas minhas coxas e a tua boca entreaberta polui a brancura dos meus lençóis. tenho os pulsos em tensão.
vens de seda com a espessura da pele e um lenço inquieto de pirilampos rodeia-te o pescoço. sobes com um passo ao sacrossanto altar de veludo vermelho e saltas a compasso binário de dildo fluorescente na mão direita, enluvada de preto como a esquerda até aos cotovelos.
serves-te dele como de um microfone e, não sei como, amplifica-te a voz para lá do cemitério de livros da casa. cantas que me matas, toda glam rock e possessão, obscena de olhos vítreos e rosto afogueado.
eu baixo a cabeça de vez em quando, como se esperasse encontrar caranguejos entre os rochedos do quarto. mas só alcanço a penumbra do silêncio. a luz está onde tu estás e é tão incandescente que derrama noite em todos os objectos em redor, sob e sobre o teu corpo.
levanto-me do mar e enfrento-te um instante maior do que um orgasmo, acreditando que podes ouvir a música do meu sorriso manchado de desejo.
mas não podes. a tua verdade é a absoluta exaustão raiada de medo e raiva.
mato-te, cantas ainda.
e eu murmuro: nada é mais fácil,
entre guitarras demoníacas e a ensurdecedora brisa do meu âmago litoral. quero sair dele em chaga.
na dor que me infligires, atingirei a pureza.

domingo, 15 de julho de 2007

A casa

há barcos de perfume a viajar-me nos corredores dos ossos.
sinto-os ancorar nas ilhas assoalhadas do esqueleto e depois partir de novo, para vaguear sem norte na solidez branca que me sustenta.
eles são o meu balanço e a minha inquietação, um clamor de sinos, uma festa de mar. alongam-se nos fémures, encolhem-se nos carpos. adaptam-se, tal como os olhos ao sol e a língua ao sal e o coração à dádiva.
por vezes saem-me aromas navais pelas unhas e crescem-me velas nos dentes e mastros nos tornozelos. mergulho numa reza inconsciente, boiando num fundíssimo poço de memórias, com sofás de morango e malas de vinho e sorrisos de açúcar.
então, entre salas e quartos de palpável maresia, procuro-te num vagar de morte, amarelo como os eléctricos de lisboa e os táxis de nova iorque.
e encontro-te entre flores de seda e picaretas em derrocada, indiferente às vagas de azulejos da cozinha, com um queixume breve na boca.
perco-me no sangue arfante, digo.
e tu dizes: não caibo no que vives.
referes-te à minha casa, arquitectada pelos traços hipnóticos dos meus pastéis de óleo, num limbo entre a ficção e o real.
a casa onde engulo libélulas ao pequeno-almoço para acalmar as ondas dos ossos e onde, à noite, cuspo morcegos na almofada. a casa onde me nascem filhos das plantas dos pés e plantas dentro da cabeça. e onde cada lâmpada é uma mulher e cada armário uma prisão de fragrâncias.
a casa que sangra. onde te encontro e te deixo.
a horas nada convencionais.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Âmbar

de peito em lava, monto uma pirâmide alada e vou cumprimentar as estrelas. faço corridas com os cometas e celebro a tua música curvada sobre o meu umbigo enquanto apago o teu rosto desta galáxia.
foste o meu fôlego, a minha guerra, a eternidade imóvel do meu abraço. e tornaste-te uma pequeníssima poeira na voracidade enxuta dos meus olhos.
hoje declino o teu desvelo, nego a tua mão. não quero que me salves dos dragões cuspidores de fogo que trago no âmago.
prefiro arder com os meus murmúrios neste longo sono envenenado de pranto.
o amor morre na sede, digo.
bebe-me, dizes tu.
e eu humedeço os lábios com a língua e pigarreio uma vez. depois telefono para casa e entorno-te no tapete, muito lentamente, até te misturar por completo com o entrançado têxtil da decoração. como se voltasse a desenrolar o teu corpo de búzio, colorido e gasto, sobre o âmbar da terra.

domingo, 8 de julho de 2007

Sossego

despi-me das metáforas, livrei-me das roupas, depus-me diante de ti sem nada que me escondesse, com o meio-dia a queimar-me os ombros e a seiva da luxúria a dardejar-me nos olhos.
tu vieste num sonho vagaroso, vestida de urgência e bichos-de-conta, e tatuaste a tua vida, sílaba a sílaba, no meu braço.
e eu colhi um riso inocente da tua boca e uma correria incessante do teu corpo.
depois, a humidade do tempo agarrou-se-nos ao peito e afundámo-nos no incomensurável rio da inércia, sem sinais visíveis da passagem das horas. pouco havia a fazer para além de perseguir cães e ver os ponteiros do relógio de sala a girar ordeiros como um sistema solar. às vezes tingíamos os dedos de sangue e confundíamos as insónias. e tocávamo-nos a medo, em súbitos actos de valentia, com o desejo a desertar da pele e o frémito da fuga a florir no cérebro.
um dia rugiste no espelho.
e eu aperfeiçoei-me na arte de te substituir pelo orvalho da melancolia.
o teu silêncio é uma vertigem, disse.
por isso me escreves, disseste tu.
hoje leio os dias à luz da tua ausência e aproximo-me do centro da noite com um fio de tinta a escorrer-me da alma.
com lâminas afiadas, assinalo os caminhos que me separam de ti. com cubos de gelo, decifro os vestígios dos segredos que me deixaste. e escuto a diluída espessura dos teus gemidos. e vejo o esplendor da tua fronte a interromper o monólogo do vento.
e amo-te num sossego de lago.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Milagre

vejo-te dormir entre os leões de pedra e na minha longa nostalgia falo com a noite sobre as coisas que não me cabem no coração depois de ti.
seguro uma pluma estrangeira e com ela te escrevo em idiomas longínquos pelos dias que virão, vazios como os de hoje e eternizados na cruel saudade de tudo o que foi e não pôde ser.
há um regresso a refulgir em surdina nas minhas têmporas. um regresso que nunca será. um regresso ao lume da sedução, com mares de cetim onde nadar e tumultuosos rios no fundo dos olhos. um regresso ao abismo vermelho do meu nome na tua boca, das chamas inquietas dos teus uivos na minha pele.
e o silêncio ergue-se do chão, numa cordilheira triste de notas desencontradas, que ponho ao pescoço, tremendo.
e nasce-me nas veias uma canção enrugada, definitiva como a morte.
ninguém tem culpa da própria solidão, digo.
e tu sonhas com hélices e valsas e crimes de paixão e véus sobre véus sobre véus. sem palavras, sem palácios de luz, sem fulgor para além do sangue tépido que te navega.
queria plantar uma árvore sublime no lugar onde dormes.
e acordar-te.
mas nesse asfalto estéril só um milagre poderá crescer.
e o meu último milagre foi ter-te amado sem te ter.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Letargia

a desilusão inaugurou-te a letargia. amortalhaste-te nela como se sentisses prazer na imobilidade, como se até o planeta tivesse parado para que melhor o olhasses, num instantâneo de verde e azul.
os fantasmas instalaram-se entre as tuas fotografias, adormeceram de rosto cansado nas tuas almofadas e beberam à vitória pelos teus lábios, sugando o amor do cálice que te estendi com inocência servil.
antes de te recolheres, segredaste-me que tinhas o coração espalhado pelo país dos pulsos rasgados e ainda enruborescias nas planícies do desejo. que eras de vidro e querias preservar-te dos estilhaços, evitar que o peso da vida te esmagasse.
e eu disse-te que te entendia e à tua renúncia a tudo o que não podes prever nem medir.
nem tentei dissuadir-te. limitei-me a ver-te desaparecer para dentro de uma curva apertada, informe e de voz sibilina, que te hipnotizou ao ponto da calepsia.
há mistérios que riem, disse eu.
mas tu tinhas as janelas do teu ser já viradas para dentro e sorriste apenas, muito levemente, em silêncio. como se dormisses desde sempre.
e eu parti em viagem, decidida a recolher cada um dos fragmentos de carne que devia estar a bater-te no peito.
desde então, tenho conhecido heróis e patifes, virgens e anjos, loucos e invisuais. tenho comido pássaros e rebolado no céu. e tenho visitado o teu refúgio de vez em quando, com as mãos em sangue, confiando que um dia devolverei a cor ao teu rosto.
mas às vezes só me apetece deitar-me ao teu lado a olhar o firmamento.

domingo, 1 de julho de 2007

O estaleiro

estou atenta ao borbulhar do tempo e choro lágrimas antigas a todo o comprimento dos dias, oscilando entre o fabrico absurdo da saudade e os actos excessivos da paixão.
descubro deuses na minha infância resumida a uma folha da memória e desenho metamorfoses orgulhosas no fio das palavras livres do passado, onde mal me equilibro, funâmbula e gasta. tanto tombo para norte como para sul e às vezes esbarro nos amplos vestidos de luz onde o teu corpo rodopia como a terra no cosmos.
quando me nasciam poemas dos dedos e tu me acenavas de luvas, as horas eram melhores, quase com a duração justa.
depois saí à rua para esperar por ti e vi-te resplandecer à chegada, de sorriso trémulo mas sem dúvidas nos olhos.
disseste: a apoteose mora no início de tudo.
e eu disse: a chuva da ilusão não molha.
tiraste as luvas, tocaste-me com prudente nobreza, soerguida de um rio de poeira, branca como o deserto, frágil como a pele, toda porcelana e oiro como o pôr-do-sol.
e partiste num assobio navegável.
eu já não encontrei o caminho de volta ao conforto lírico do meu canto. e agora tenho insónias. deito-me cedo para sonhar mais tempo contigo mas oiço-te respirar entre os lençóis e os plátanos e os fios de ovos festivos. e tilintar no escuro como um lustre ao vento. e cintilar nos abraços reclinados sobre a brevíssima unidade que a vida nos consentiu.
o meu coração é um estaleiro de andaimes vibráteis por onde sobem as moléculas operárias do amor, de baldes com entulho ardente às costas e pás de cimento meigo nas mãos, destinado a colar-nos e a reconstruir-nos pedra por pedra num edifício sem limites, onde poderemos ser pássaros aninhados sem pressa. nem vontade de voar.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

As mentiras

tinha um armário de vidro onde arrumava as mentiras, preciosidades minhas que executava sem escrúpulos e aos poucos se confundiam com a minha verdade.
ordenava cada uma delas com rigor maníaco, as maiores por cima, nas gavetas mais largas, e as menores por baixo, inócuas mas ainda necessárias.
por vezes, reciclava uma das mais elaboradas, imaginando-a inédita só para não me admitir a apetência pela repetição, afinal o segredo da minha aparente auto-confiança.
naquela transparência inerte, subtilmente combinada com a mobília herdada, coleccionava os beijos roubados e armazenava os sinais de transcendência alheios, tudo o que de melhor podia vampirizar para fabricar poesia.
nos mundos de conjecturas por onde passeava, ia deparando com marionetas quase dotadas de ego, cujos olhos se fechavam a rir e cujos ouvidos, directamente ligados às plantas dos pés, se embeveciam e dançavam ao som das minhas extravagâncias musicais, há muito compostas e habilmente reutilizadas até ficarem roucas.
nunca sentia culpa. apenas uma saudade flamejante no sangue, sempre que a beleza começava a murchar.
porque, apesar dos meus esforços e da maquilhagem, o belo efeito das minhas mentiras definhava sempre, como definha tudo o que vive.
um dia, encontraste-me à deriva neste mar de farsas.
pródiga deusa da lisonja em dádiva total, quiseste sossegar-me o espírito e num segundo resgataste-me ao vento e reduziste a cinzas o teatro da minha existência.
disseste: trago uma manhã nova para o teu engenho.
e eu disse: serei o espelho da tua bondade.
e por escasso tempo foste a minha sombra e a minha verdade.
mas não pudeste ficar.
em redenção me entregaste ao peito das estrelas, para que eu dormisse em paz.
o armário de vidro subsiste no canto da sala, entre os outros móveis, mas hoje é um túmulo de metáforas sem destino, sepultadas no perfume da eternidade.
o meu coração continua a ser um assunto só meu.
mas agora consigo amar-te sem ti.
e não torno a mentir.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

De gelo

o sol volta a iluminar os teus dentes embora o inverno do meu mundo recolha as cores da água na sua hedionda arca de frio.
a palpitação retorna ao teu abraço enquanto os ramos das minhas árvores se entrelaçam em equilíbrios impossíveis.
o tango regressa aos teus olhos apesar do espesso nevoeiro que desce sobre os telhados descompassados da minha cidade.
levaram-te aos lábios uma taça de neve, que se abriu em sinfonias de aromas, num acto único de magia com sabor vermelho roubado às silvas.
ataram-te um arranjo de violetas felizes à varanda e deixaste entrar a alegria em casa, misturada com aquele agradável rumor da respiração dos amantes depois do amor.
porque desejarias tu acolher a minha pele experimental e olhar para os meus bizarros medos, projectados nas dunas em montagem psicadélica? como poderias tu receber a minha amarga verdade e permitir a nossa sublime catástrofe se só a explosão das galáxias do desejo nas tuas mãos te faz sorrir?
escondo as tuas mentiras no quintal, fico a ouvir as madeixas do teu cabelo a tombar sobre o pavimento gelado e os teus caracóis mesclados a patinar até se deslaçarem numa morte eterna.
então recordo os teus gemidos indiferentes a avolumar-se em soluços circulares. e as veias do meu corpo formam rios de lágrimas pilhados aos canais de lava de um tempo quase nosso. aqui definho à porta da plenitude, com o tecto gasto da alma a cair a pique para dentro das minhas algibeiras vazias.
preciso de uma terça-feira quente para renascer.
como estará o céu amanhã?

quinta-feira, 21 de junho de 2007

O acordo

afago com os olhos as belas formas das raparigas que passam a caminho da noite. levam as memórias vazias e o peso desmesurado da juventude nos lábios pintados de vermelho seco, que deixam marcas indeléveis nos cigarros. riem-se sem razão e atam às blusas fios invisíveis com que se ligam umas às outras, como se fosse um grande perigo perderem-se no intrincado das horas. são personagens de filmes mudos e, em certos serões alegres, eu brindo contigo à sua desenvoltura sem palavras.
no nosso sossego refastelado, sou o teu relato dessas imagens mundanas, enlameadas pelos perfumes fúteis da cidade e decoradas com o ar baço que se estende para lá da varanda.
tu estás em recolhimento na órbita calcária dos teus pensamentos e só as abarcas depois de coadas pelo meu olhar abandonado por deus, tão asséptico como a solidão.
assim nos entendemos, num acordo diplomático sem assinaturas, que nos impele à vida. eu empurro a tua demência latente para os braços seguros da rotina, tu descerras navalhas ácidas no meu funeral sempre próximo e adiado.
e o nosso amor aumenta à medida que amarelecem as páginas dos livros em ordenado caos que revestem a nossa casa, em tudo semelhante às nossas mentes labirínticas.
dizes: o teu desgosto pulsa nos meus joelhos.
e eu digo: és o meu ópio de pétalas negras.
o rumor do tempo embala-nos e nós perduramos bebendo medronho no extenuado país da paz insípida, tal como perduram as minhas chávenas bafientas, empoleiradas umas nas outras, atrás do vidro martelado.
nas minhas piores madrugadas, apagas-me as luzes do sangue e lembras-me a doçura esquecida das minhas antigas raparigas, as que te levei à boca em cálices de ciúme. sorris na obscuridade das nossas feridas coalhadas nas crostas dos dias repetidos e voltas a ensinar-me as vantagens da prostração.
o pânico morre então nas mãos que entrelaçamos em gestos destituídos de significado. tu voltas a mergulhar na tua protectora cegueira e eu fecho os olhos para tornar a ver.
e adormeço-me à força, quase feliz, com a saudade a agasalhar-me os ombros.

domingo, 17 de junho de 2007

O tempo e o mármore

vermelhos são os fios dos relâmpagos que rebentam no meu espírito. imagens em estilhaços das tuas mãos na minha carne tacteiam-me a memória, tão ondulante como o mar da Barra.
dantes havia, lembro-me, uma ponte erguida entre os meus olhos e o teu coração. os nossos sorrisos abriam-se como janelas pela manhã e à noite o sangue inchava-nos nas veias e lavrava-nos incêndios sob a pele.
tinhas-me escolhido. e eu acolhera-te sem uma única tremura breve entre as ervas desbravadas do meu corpo envolto na luz ruborizada, por acção dos contínuos crepúsculos, da árida casa onde vivia.
sentia-me feliz como uma coisa simples e a minha felicidade era uma manta de espelhos sobre o passado.
depois veio o tempo e o mármore, dois macilentos comparsas abraçados, a engolir tudo e a imobilizar-nos, até nos transformar em ruídos e sombras.
agora o passado és tu e o sol não entra na casa. o medo sai-me dos ossos pelos olhos e esmaga-me os sorrisos. a minha boca é uma janela fechada e o meu corpo um compêndio de flora morta.
ainda há praias alojadas nas minhas vértebras mas já ninguém passa por elas.
atiro música contra as paredes e acendo a lareira com poemas novos e velhas cartas de amor.
às vezes bebo chá. ao domingo como torradas.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

A canção

começo hoje a música subterrânea da crueldade, com cordas de arame electrificadas na corrente da escrita e ecos da frieza muda dos azulejos bolorentos onde o teu corpo se desfez. procuro remendar as feridas nos meus tecidos através deste som rente à pele, que me arranha como o desânimo.
o verão anuncia-se nas flor que murcham. já não há brilho em frente às janelas, nem sequer nos talheres cruzados sobre a minha salada de queijo e lua.
sufoco de calor e estendo o braço para dentro da imaginação, decidida a arrancar dela a perfeita canção assassina, um tufão de palavras em vidro ácido para cortar a tua boca.
e neste instante sou um exército em chamas de pés fincados no amarelo lento da erva e do caos, sou um desenho de sangue nos teus pulsos à procura do azul celeste na alquimia da violência, sou um comboio torrencial que engole as ossadas de um amor puro a sucumbir de vacuidade, como um milagre amputado.
sem saber o que fazer do fogo que me inunda as minhas vis entranhas, tento compor a derradeira melodia letal.
digo: o teu sexo é uma armadilha de vento.
e tu dizes: o ódio não mata.
se eu conseguisse terminar a canção, talvez tu congelasses no cubículo de prazer onde jaz o teu medo e dança a tua perdição.
e então poderia reconduzir-te ao outono e voltar a amar-te.

sábado, 9 de junho de 2007

Aventura

invejava a tua juventude a dançar no tapete de areia das minhas tímidas navegações. as tuas mãos sem rosto aplaudiam o luar da minha noite de folheto turístico, onde nunca chovia e havia sempre lenços brancos a acariciar o éter das partidas e chegadas.
eu era um movimento literário entre as tuas coxas, um voo em metáfora na tua esquálida nudez. permanecia no avesso da tua pele quando as luzes se apagavam e renascia pela manhã ancorada nas paredes do teu peito.
a voz da escrita abraçava-me de vez em quando e um fogo vagaroso percorria o lago onde cisnes de luz trágica testemunhavam os teus passeios de fim de tarde, entre árvores centenárias e castelos de passado duvidoso.
encostada ao teu corpo liso e cálido como a neblina dos trópicos, sentia o meu coração de pedra a amolecer até se tornar uma polpa doce, um coágulo de puro desejo, mudo como uma península de sangue a resvalar lentamente para o rumor humano do mar.
eras-me tão essencial como o oxigénio nos pulmões e a brisa refrescante do litoral.
e eu entrava dentro dos teus olhos em mergulhos impetuosos e via-me imersa em ti como jamais estivera imersa em mim mesma, uma canoa naufragada nas torrentes do teu espírito.
dizias: visita-me como a uma aventura.
e eu percorria-te em carrósseis de beijos como se a tua carne clara, o esplendoroso revestimento dos teus ossos, fosse um imenso parque de diversões, aberto só para mim pela madrugada adentro.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Água

estávamos trancadas na arca das maravilhas compadecidas, a ver o mundo passar. eu com os meus incêndios estéreis, tu com os teus sonhos calados.
ele passava e nós acenávamos-lhe, imaginando como seria agradável que outra mão agarrasse essa nossa mão que acenava em permanência.
imaginando baixinho, como se temêssemos acordar as crianças ou despertar o coração. imaginando sem intenção.
o que imaginámos morreu para renascer em múltiplas formas.
numa madrugada com cascatas de espuma a descer do céu e borboletas frescas a trespassar os cortinados, a tua nudez fez-se um mar de sensações onde naveguei sem rumo até me tornar âncora, esquecida de mim, com a lua a cantar-me versos inefáveis e um riso quase inocente a tremular-me nos lábios.
então vi estrelas de um desejo ébrio nos teus olhos.
e tu, antes que eu partisse, deixaste um círculo embaciado na minha pele. um círculo perfeito e nenhuma aresta à superfície do meu corpo, agora habitado pela tua respiração, como se eu fosse de vidro e tu um assobio silencioso, subitamente apropriado ao meu consolo, orvalho das manhãs solitárias em que desperto de lábios colados e garganta seca.
hoje o primeiro copo de água de cada dia é um beijo teu.

terça-feira, 5 de junho de 2007

O silêncio

desci ao fundo num remoinho.
náufraga, toquei o umbigo da morte. e o que não fui começou a latejar. de olhos cegos nos sargaços e com a branda escuridão pegada à pele, ouvia ainda a tua sombra a desenhar-se na sinfonia do vazio, conduzindo-me ao limite do crepúsculo, um ocaso supremo em plena madrugada.
quis chorar e caí. quis gritar e sorri.
depois a massa por lapidar das minhas secas emoções explodiu e o mundo eclodiu no meu abraço sem corpo.
restou o nada, um vácuo denso, preto riscado a preto.
despertei numa cortina branca fechada, de cérebro em cinza e a estrada entre a boca e o estômago em aridez aguda, dor autêntica, material como nenhuma ausência.
em surdina disse: ninguém pode sair impune dos seus crimes.
vi-te chegar nesse instante, com as meias de vidro brilhantes nos sapatos brancos de passos decididos.
com mãos obreiras alisaste o lençol, com gestos profissionais desligaste o rádio e rodaste ligeiramente a manivela da cama. ofereceste-me água e arrancaste a agulha do meu pulso. O soro parou de pingar e o meu sangue recomeçou a circular.
ainda tresandava a fracasso quando te entreguei os meus sonhos.
tu cruzaste os braços a sorrir e disseste:
os teus sonhos são punhais.
felizmente, há danos reversíveis. e murmúrios felizes colados à mobília da sala para iludir o silêncio.

sábado, 2 de junho de 2007

Os efebos

das manchas de tinta que se evaporam da minha mente insone, vejo erguerem-se efebos ondulantes, quase moles, de troncos flexíveis com músculos esculpidos como árvores vergadas ao vento. habitam o quarto e segredam-me sonhos.
os meus olhos tocam-nos insensatamente. a tua ausência injecta respirações translúcidas no tecto. nada mais me resta senão esperar-te, murmurando flores em sílabas aladas e ocupando o silêncio com a voz da escrita, esse som ténue com a cadência de um picotado, letra a letra cosido como um sussurro contra a brancura do papel.
às vezes paro e suspiro, imaginando a tua mão entre as minhas.
depois tu chegas. ainda de noite. eu recebo-te como um cão obediente, de língua húmida e ao nível dos teus joelhos. tu beijas-me de fugida, reparas nos meus lápis por afiar, amontoados sobre a mesa da cozinha, refilas com os cigarros e aludes ao inferno dos teus dias atulhados de lixo humano.
dizes: invejo a ansiedade viscosa que depositas nos teus cadernos.
e eu digo: fazes amor como um tigre demente.
entras no quarto e sentas-te na beira da cama, de sexo túrgido e um gemido de folhas no peito. eu ajoelho-me junto à cabeceira e desaperto-te as sandálias. presilha a presilha, lentamente, até te libertar os pés de todas as tiras e amar com os olhos cada sulco neles inscritos. tu deitas-te com um bocejo enquanto os efebos cavalgam nas minhas costas.
e morrem-me os sonhos.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

O inimigo

cobravas à noite as tuas promessas e pagavas os teus vícios com a palidez perene, tez e dentes de uma mesma tonalidade, o ventre dilatado de álcool, ouvidos insuflados de batidas minimais, olhos fragmentados como fotografias, cabelos bêbados, dedos nus como o coração e botas pretas.
dançavas para dentro, com um realejo no peito e as asas fechadas.
eu plantava árvores de fruto no meu exíguo quarto forrado a livros, sob luzes brancas, incandescentes como o sol.
às vezes meditava na cor das auroras que inauguravam os dias da minha infância e quase conseguia sentir o rumor das nascentes do mundo exterior.
posso ter-te, perguntaste.
e eu disse: a minha carne é lenta.
encrustada em mim mesma, não conseguia ver-te. podia olhar o teu rosto por mil anos e jamais perceber-te. só entendo as palavras, só sei ler a abstracção. a concreta cicatriz dos teus receios escapou-me sempre, tal como as raízes das minhas árvores, desde tempos imemoriais enterradas no verniz indelével das tábuas do chão. a salvo, como tu, da minha acelerada vaniloquência e do som húmido do meu tumultuoso oceano interior.
de lágrimas encolhidas na fímbria dos olhos, percebi certa tarde que em ti não era mais do que um grão de areia entre os outros que há muito se acotovelavam na praia das tuas mentiras gentis. um grão de terra clara demasiado incómodo, um ruído surdo subtraído ao magma da paixão, a invadir os teus sonhos e as vielas rugosas do teu corpo.
a sugar-te a humanidade e o temperamento.
a perturbar-te a marcha dançante, rumo à febre eterna.
então disse: abomino o teu desejo.
e tu disseste: é o inimigo do teu prazer.
quando arrancaste o realejo do peito, vesti-te o coração e tirei-te as botas.
então desembrulhaste as asas e voaste velozmente para dentro de um dos meus livros. tão velozmente que não vi qual.
ando a folheá-los há séculos, à tua procura, sem sair deste quarto enregelado, onde já não crescem frutos que me ajudem a meditar. perco-me de fome, mastigo as luzes brancas e não oiço o mundo nem vejo o teu rosto.
mas ainda morro de amor.

quinta-feira, 31 de maio de 2007

O enigma

esculpias raparigas frescas em polpa de terra molhada e tecias sombras fantasmagóricas na colcha tricotada à mão. não desertavas. mas também não vivias. realizavas a tua obra, bebias catedrais nas férias, visitavas ribanceiras ao sábado à noite e era tudo.
eu vinha de dentro de um silêncio cheio de gente que me apedrejava. no interior obscuro dos meus poemas tinha havido sempre enigmas indecifráveis, que amedrontavam os homens e os seus cães. devorava lâminas e escrevia a sangue, directamente dos pulsos cortados.
encontrei-te no alto de um penhasco trepidante de decibéis, entre luzes e lantejoulas e corpos dementes. sussurrei-te dois versos baixos, quase ao nível do chão, que inexplicavelmente abriram as asas e subiram lentamente pelas tuas pernas, tocaram ao de leve as dobras dos teus joelhos e continuaram a voar intrépidos até se aninharem no teu colo.
conduziste-me pela mão até às tuas raparigas e deitaste-me entre os teus fantasmas. com eles sorri de lábios queimados e renunciei ao silêncio num desespero excessivo, tão alto como as tuas ribanceiras. delgado e pronto a vergar-se como um junco.
passei a morar a bordo de uma catedral em eterna peregrinação, onde saciavas a sede entre canções difusas, nos dias de trabalho e nos outros.
na madrugada do sismo, estilhaçaram-se os vitrais, ruiu a catedral e as tuas raparigas partiram, de braço dado com as sombras. choraste pela primeira vez.
e eu disse:
podia ter-te amado com outras palavras.
e tu disseste: o teu amor é um país fechado.
hoje o horizonte é tudo o que me resta.
no relógio do meu coração são sempre cinco da manhã.
só tu sabes porquê.

terça-feira, 29 de maio de 2007

As rosas

arrancaste os espinhos às rosas, um a um, com a cautela de quem atravessa uma estrada, e misturaste-os com as beatas no cinzeiro de alabastro. enfiaste os caules nus na lata dos pincéis gastos e na taça de vidro arco-íris juntaste algumas pétalas à acelga e aos agriões, que temperaste com o vinagrete do dia anterior, esperando que eu comesse.
das restantes pétalas fizeste uma grinalda para enfeitares os cabelos. depois, pegaste no casaco, esbofeteaste-me com uma folha verde-desdém em forma de gargalhada e saíste de casa.
fiquei à tua espera durante muito tempo, a alinhavar palavras em agendas antigas, até chegar ao osso das sílabas e ao ciciar dos pontos finais.
consegui resistir aos sulcos das balas na cabeça, ao vinco do cinto de cabedal no pescoço, ao choque da torradeira no banho de imersão, aos golpes nos pulsos cortados lentamente, ao estrondo da queda vertiginosa do sexto andar, à digestão da caixa de comprimidos, à incisão da faca na barriga.
e tornei-me cúmplice das longínquas videiras em socalco, derramando vinho na língua enquanto espetava alfinetes no teu retrato e te chorava eternamente noutros braços, nos braços dos meus imprestáveis solilóquios, tecidos noite a noite pelas aranhas já conformadas do meu cérebro.
mas naquela manhã de ofuscante luminosidade, em que tinha acabado de esfregar os tapetes e de arrumar de vez o teu material de pintura e as janelas se abriam ao vento como há muito não acontecia, ouvi a fechadura da porta e senti o aroma das rosas a invadir a casa num lance.
penduraste a grinalda por cima do casaco no cabide do bengaleiro arte nova e cuspiste-me um pássaro de mel sorridente.
disseste: nunca mereci o teu amor.
e eu disse: o vento escreve o teu destino no curso dos rios.
então ofereceste-me a tua boca e o meu coração encheu-se novamente de pólvora e de flores e de gestos de mar.

segunda-feira, 28 de maio de 2007

O divã

a ternura pingava-te dos dedos e os meus olhos paravam no astro essencial da noite.
o presságio gelado da manhã ainda me amargava a saliva, mas tinha os nervos e os ossos em paz. já não sentia os dentes da saudade a roê-los.
lembrei-me dos meus recorrentes sonhos contigo dentro e medi toda a amplitude da inutilidade deles naquele instante em que ali estavas, cintilante na tua nudez quente como um truque de ilusionismo.
sou um coração feliz, disse.
sou um corpo fragmentado, disseste.
como sempre, mentias menos do que eu.
demorei-me um par de minutos à roda da tua cintura, por magia espiralada.
e só voltei a falar quando retornei à minha forma habitual.
disse: és um oráculo de pele muda.
tu embrulhaste-me os ombros com as pernas e aquele divã de couro estalado tornou-se o lugar perpétuo do meu prazer.

domingo, 27 de maio de 2007

O cofre

abri o cofre dos acasos e entornei-os por cima da cama, vasculhando-os até pegar naquele instante em que soltaste um como está? quase indiferente. virei-o e e revirei-o, raspando-lhe as escamas e o halo negro que o mantinham vivo, há anos em clausura, dividindo o exíguo espaço do cofre com todos os outros acasos. os meus, os nossos e os do afinador de pianos que nos regava as rosas nas férias e me confiara, há meio século e um dia, os seus.
olhaste-me com olhos de incrédulo verde enquanto eu ensaiava palavras na minha cabeça, procurando-lhes uma musicalidade há muita perdida.
não dizia nada há 32 horas. sentia o tempo íngreme a dar saltos para a frente e para trás, fazendo tremer o guindaste que prendia a minha alma ao éter desde aquela já remota manhã de outono em que o granito, pedra a pedra como um túmulo no meu âmago, se tornou uma espada de água. a manhã da tua chegada.
tornei a arrumar os restantes acasos e fiquei a ver esse instante morrer. demorou pouco, pelo menos não o suficiente para que os teus olhos mudassem de cor.
entreguei-te o cadáver e tu beijaste-o, engolindo o espaço ao seu redor. e no extremo do meu braço nasceu então uma mão nova, pela qual falei.
disse: os ecos do amor extinto ainda queimam a liberdade.
nessa noite o teu corpo tornou-se uma árvore selvagem no meu mundo intratável.

sábado, 26 de maio de 2007

Ao volante

a cidade acendia-se, janela a janela, e o teu olhar estremecia como estremeciam as folhas do outono às rodas do carro. o asfalto debitava a sua música de cordas deslizantes e o imenso cartaz da musa dos ombros lisos chamava-te e iluminava a esquina que haverias de dobrar com o início das chuvas.
tinhas saudades do vinho a correr nos tristes rios da tua loucura e balbuciavas cânticos de louvor à caligrafia do desejo. eras o mais prodigioso mistério do mundo ocidental e eu abrigava o teu coração em dádiva perene.
estacionei e conduzi-te pela mão à minha mansão de papel, onde desfolhámos flores carnais e trabalhámos as horas da poesia num alvoroço de ardores e feridas.
disseste: não vás.
e eu disse: sou um rochedo.
no território maldito da paixão, indiferentes à ameaça das águas, fomos trepadeiras imparáveis em direcção ao céu. e quando aprendemos a saborear o ritmo lento dos dias, o tempo tolheu-nos e acabou por nos esmagar.
então a cidade desvaneceu-se, janela a janela. e começou a chover.
eu depus as horas e as flores e parti para o deserto, onde moro ainda, com um fado atravessado na espinha e a voz descarnada, ao volante.
olho através do vidro e falo contigo através da brancura das cálidas dunas.
digo-te, em surdina: sei que tu, que um dia foste o meu destino, havias de amar estas escarpas de rendas e estes venenos em fio que vejo do alto da minha solidão muda.
evoco a cidade por um segundo. vejo-te a caminhar em serena fusão com a calçada, até desapareceres no cotovelo das duas ruas que mais pisámos. e depois adormeço.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

A luz

quando a luz se apagou, ficou um aviso a pulsar na tua pele, encapsulado nos poros vibrantes das tuas costas arqueadas. um pingo de energia voluteava entre um poro e outro, majestoso na cadência dançante dos seus saltos, o teu corpo tornado soalho de salão de baile, espalhado num grito flutuante e meu.
era quase possível beber o teu ritmo, estugar-lhe o passo líquido para prendê-lo na língua.
disseste: cuidado, as minhas cores viajam no escuro.
e eu disse: fecha-te.
tu abriste os olhos para a noite, recolheste os tambores e começaste a arder. eu puxei-te para o colo e enfiei-te no dedo, anel de música orgulhoso num repente imóvel.
e o dia nasceu no quarto.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Nostalgia

fixaste o sorriso na minha boca e apressaste o passo na minha direcção. nem uma hesitação bulia no teu rosto. nenhuma gota de remorso atravessava os teus olhos. a saudade zurzia canções de mar nos teus ouvidos. pensaste em despir o casaco mas deixaste-o ficar, pendendo imóvel como um telhado inútil numa casa abandonada.
fechei o livro e não te abracei. abri a garrafa molhada do gelo que a protegia do calor de agosto e apontei-te a reles cadeira de plástico verde do terraço, recordando no meu íntimo os dias em que te comparava a todas as coisas belas do mundo enquanto tu pestanejavas e baixavas a cabeça, com os dedos enrolados no cós da camisola e os sons da cidade rodopiando aos teus pés.
conversámos e comemos. conversámos e bebemos. e conversámos. até começar a arrefecer e o horizonte engolir o sol. falaste-me dos países onde moraste, das mulheres com quem dormiste, das partidas e chegadas que te enrugaram, dos projectos que não terminaste, dos sonhos que perdeste, dos amigos que viste morrer, da interminável sucessão dos teus desgostos.
eu contei-te as minhas viagens interiores, muito brevemente, para não te aborrecer. e, de tão apegada à minha solitária nostalgia, não percebi que naquela tarde voltavas.
e tornaste a partir.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Um meio

num meio-dia de um meio-outono invulgarmente solarengo, quis lamber-te o açúcar das pálpebras e saber a cor dos teus ossos riscados de noite. atingi o âmago da tua solidão e um grito do meu sangue pegou-te ao colo e levou-te amor aos tímpanos, tropeçando duas vezes no vagabundo que dormia à soleira da porta que dava para essa cidade imensa que era o teu coração.
vagueámos muito tempo entre as sombras, ouvindo janelas abruptas de vento a bater nos caixilhos, sob tectos preguiçosos, sem astros a rodopiar neles nem luares pintados. o teu nome ajustou-se à minha boca e a tua nuca tornou-se um declive de sal por onde deslizei num silêncio tagarela, afiando lentamente a lâmina do meu desejo.
no velho crepúsculo que tacteava o meu riso, cresceram então mãos para te povoar e braços que te prenderam e pernas voláteis como cárceres de luz. ficaste um instante, até o meio-outono se converter em inverno e o tempo estrangular o sol.
depois, quiseste soltar-te, eras demais do mundo para te fingires eternamente minha e em dias repetidos exemplar. os meus órgãos todos, chocando uns contra os outros, debateram-se no vapor ácido que flutuava no interior do meu corpo. franziu-se-me a pele do rosto, regressei ao vácuo sem fôlego das minhas anónimas insónias e numa madrugada de arquitectura pornográfica, recomecei a cair.

terça-feira, 22 de maio de 2007

O espectro

chorei pelo espaço inocupado do meu ser com a pele colada à tua, na treva adocicada do teu quarto de persianas corridas. a consciência enlutava-se-me e o meu espírito despido era uma espécie de cegueira, disputando a inocência com a brancura das paredes e as gargalhadas da tua árida melancolia.
disseste: era de supor que a mão que te acariciava pudesse agredir-te um dia.
e eu disse: às vezes a roupa dói-me tanto como a nudez.
tirei o sorriso que guardava, suspenso na lembrança de uma manhã feliz, e meti-o por baixo das unhas, que cravei nas tuas costas. de súbito, ganhaste o tamanho do mundo e começaste a dançar. eu enxuguei as lágrimas, descolei-me de ti e tornei-me um espectro discreto, para sempre imerso na mais efémera das tuas memórias.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

O princípio

trazias nos olhos uma solução para a realidade, nas mãos todos os sentidos aglomerados e uma pista para a fantasia na costura das calças descaídas.
contemplei o teu rosto de perfil, demoradamente mas sem notar o precipício que nele começava, abrindo-se no ar abstracto à tua volta, até terminar no teu sexo.
três segundos bastaram para revestires de azul a mais funda cicatriz da minha memória, para recurvares o céu e extinguires a minha sede tão antiga como o muro da estação.
o amor falava através da tua pele, como se fosse novo, por estrear. desenhava um incêndio nas minhas lágrimas e tomava o espaço em falta do meu ser. então rasguei a carne e deixei-te entrar.