segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Antecipação

dou-te o braço como quem caminha na avenida
orgulhosa do teu penteado
tu torces-me os cabelos e endireitas-me os tapetes
no vagar do costume

garbosas moças
que por nós passam
são como pássaros a farejar a primavera
rapazes trémulos
que só nelas reparam
são como petiscos a enfeitar a travessa

e eu vou-me aos teus lábios e arranco-te um beijo.

pudesse a noite levar-nos à luz
e os nossos espelhos repartidos
seriam sagazes de tanto nos verem.
mas
um ano sem amor não dá frutos.
apenas flores de sal no deserto,
desejos mal desenhados de azul
e rancor a nadar na cerveja.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Metamorfose

reinvento-me hoje
pouco mais que orvalho
nas nervuras das folhas
na correnteza do que é natural
e de vida firme.

nada me pertence além destas lágrimas
de olhos voltados para dentro
no medo de ver a verdade,
na esperança de não confirmar
que para mim não existe casa,
apenas abrigos,
e que os meus desejos morrem à luz,
sucumbem de imediato
quando lhes bate o sol
e largam a penumbra deste quarto
onde só a memória persiste,
e conforto nenhum.

sei que a minha magia é real,
e posso ter o mundo no corpo,
porque afinal o que perdi
não foi meu jamais.

amanhã
finalmente livre
hei-de converter-me em flor
rosa ou lírio
margarida até
ou narciso.
e
poderás desfolhar-me de novo.
ou pôr-me
a enfeitar-te os cabelos.

nesses finíssimos fios de disfarçada brancura
que por vezes acompanham o vento
viverei feliz.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Carrossel

vens desperta esta noite. os olhos vivos as mãos loquazes
falas dos pobres
das crianças excedentes
de não ter o que comer
da terra que seca e chora
e depois
do privilégio que somos,
e é quase
um assomo de alegria.

vais preparar o chá.
eu mantenho-me a olhar o vazio
genuína na minha ilusão
como carraça agarrada ao que me dás.

afinal não há chá.
nem a música que te apetece. nem rumo para nós.

estão cores ali ao fundo que não vejo,
dizes,
não é minha esta bússola
nem são meus estes sonhos
e estas paredes em branco.

eu oiço-me presa às rodas do desejo
o pensamento em carrossel
o coração desigual.
vejo-te beijar-me como num filme
demoro-me em ti quanto quero
e então digo,
estar a sós materializa o que foste.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Pira

agora que te desfazes nos meus olhos em lenha
tenho fornos a queimar abraços na circulação

mas não me despeço de ti.

o teu corpo habita sem poder o meu
folha em canteiro tombada
expressão de quem nada pede
por minha vontade
eco, penitência
pela medida exacta do futuro
que neste entrançado presente enfrento
e no tempo previsto
encontro-me.

multiforme,
sem remédio
nua em pranto servil
de fogo a rasgar a neve

e as tuas cinzas desde as pontas dos dedos às metáforas.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Notícias

descalço as sandálias
desdobro o jornal e contorno a rotunda aquática dos teus olhos, temo mergulhar neles, entre
sargaços
cadáveres
fantasmas
carícias em suspenso. és só um rumor no meu peito ou a mulher que fuma sempre com a mão esquerda e agora estende roupa
?
soam-me a lume os teus olhos,
contêm a desmesura da humanidade, essa incapacidade de se ser outro para se encontrar,
e afinal choram.
serves-me um café que não pedi, trocas de camisa, persegues uma traça. ouves um alarme e espreitas à janela. ocorre-te que talvez não fosse má ideia começares a roer as unhas, agora que não se pode fumar em lado nenhum.
mas em casa ainda podes.
sim, em casa ainda posso, pensas
à procura do maço. hesitas nos gestos como quando me agarravas de ternura. eu leio, hoje começa o novo ano judaico,
5771. e não te digo.
escolhes um disco, procuras uma faixa,
fumas inevitavelmente de indicador e médio esquerdos e uma leve tremura, que é um quase um sorriso, no lábio superior.
moloko, just being is bewildering, guincha a roisin.
prefiro radiohead, penso. mas não digo. quando éramos felizes, dizia-te tudo
?
há uma veia inédita na tua testa. o sofá parece-te mais desconfortável. pergunto-me se me vês enquanto te olhas ao espelho, como eu muitas vezes nesse quarto de céu onde dormimos. se és uma presença de luz ou a mulher que gostava de ser um gato e agora se senta ao meu lado.
aplaca-me a ira, esta vertigem do engano, dizes.
tento concentrar-me no mundo sujo do jornal. os movimentos do relógio imitam o meu coração percussivo, o ar torna-se denso, tu apagas o cigarro. não sabes o que fazer às mãos nestas áridas noites em que me visitas.

todas as noites têm um sol a preparar-se para nascer.
mas se viveres no deserto, nenhuma voz humana
poderá ensinar-te o milagre.
não há erro que perdure, digo eu.
tu pensas queijo
chocolate
pão
salmão
gelatina, o que te faz falta, tens de ir às compras, enervam-te as ausências. eu leio,
irão suspende morte de mulher por apedrejamento e sorrio. tu lembras-te das mãos brancas do teu pai
dos meus silêncios indiscretos
dos nossos corpos em concha. eu lembro-me que fujo sempre ao que tenho, habituei-me a falhar.
e nunca te disse tudo.
leva-me para casa, dizes.
eu volto a contornar os teus olhos. mas escuto-os ainda. e então digo,
a nossa casa é da infância, morreu no bibe.

largo o jornal e calço as sandálias.