domingo, 31 de maio de 2020

Lobo Mau

quando comecei a soprar,
de fòlego renovado pela primavera amena,
quase sem achaques alérgicos,
já tinha engolido a avó e a sua idosa sabedoria conformada,
e adicionado a neta no Instagram,
uma espécie de seguro de vida,
para o caso de tudo o resto falhar.
só tinha de meter conversa,
enviar o retrato de dentes recolhidos e barba rala,
sorridente no bosque florido.
agora não havia quem não se rendesse à natureza,
mesmo que só em fotografia.
não era o que eu queria
mas nem sempre se pode ter o que se quer
e já teria sorte tendo o que precisava,
um abrigo na estação das chuvas e um ombro suave para te chorar.

a primeira casa desabou em três tempos.
o telhado de colmo, as paredes de juncos, o mobiliário têxtil.
não estavas lá.

da segunda casa, um desses bungalows com alpendre
de resort
hippie chique moderno,
a corrente de ar dos meus pulmões,
há três meses apenas sem tabaco,
destruiu as janelas,
quatro em linha numa simétrica perfeição como a do teu rosto.

espreitei
mas também não te encontrei.

só a terceira, de pedra, terra e cal,
forrada a lágrimas e música serena,
era a tua casa.

tive a certeza mal vi as sardinheiras na varanda
e, pelas frestas, os livros espalhados na sala.

faltou-me o ar e despi,
uma a uma, as peles da maldade,
como se não me pertencessem desde o início dos tempos.
e levei a bomba da asma à boca,
reconduzindo a custo o sopro de desejo no ego sublimado
ao assobio voador que noutra estação te prendera.

felizmente vieste à porta.

não me reconheceste e deixaste-me entrar,
ou talvez sim, mas preferiste esconder-me a verdade,
para de novo podermos viver o amor pela primeira vez.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Pé de feijão


atordoada pela fome do teu corpo
trepei pelo caule interminável
que nasceu em pouco tempos
daqueles feijões mágicos,
com raízes no passado,
que me ajudaste a plantar.

de estômago embrulhado em fastio
uma nota de choro na garganta
o sexo sem fulgor
as pernas fraquejaram
um par de vezes
mas trepei e trepei,
sem olhar para baixo
não fosse sentir vertigens em estreia
como se não tivesse já dançado em câmara lenta
no topo dos arranha-céus
e atravessado nuvens,
funâmbula de improviso

cheguei arfante.
lá no alto,
não havia ovos de ouro nem harpas,
muito menos o declive do teu colo,
onde poderia deitar a cabeça
e descansar.

apenas o gigante coração
que um dia me prometeste
inquieto
pulsante
mas que para esta fome
do corpo não serve.

olho para ele, quase desfaleço
Mas ao menos o ar aqui é puro.
inspiro, expiro, hesito.

não sei se o atire,
se o abrace e tente descer.

domingo, 10 de maio de 2020

Perspectiva

arranco-me do medo,
retraio-me do desânimo,
esqueço a culpa
que ainda há dias trotava como cavalos na arena infernal
da minha consciência.

de novo idealista,
insensata talvez,
volto a acreditar no nosso amor,
inextinguível no cume da montanha mais íngreme,
infinito no fim da estrada mais incerta,
cintilante no interior mais esquálido da noite.

e oiço violinos pungentes
em declinações enlevadas
enquanto me preparo para ir ao teu encontro.

cabelo lavado,
unhas cortadas,
pele hidratada,
roupa cheirosa.

visto-me de sorriso na boca e alma agitada
na perspectiva do milagre:
um abraço apenas
e a vastidão do mundo nele contido,
à flor do teu corpo.

estou a caminho,
sem vergonha,
imperfeita, insegura, mas decidida.

mas tu dizes, não venhas.

eu recolho-me, dispo-me,
não discuto.

sei que tendes para o real
como eu para a maresia
e é sagrado o teu tempo e forte o sentimento.

e que toda a verdade depende da perspectiva
e o milagre, claro é,
sempre esteve somente na minha fantasia.

sábado, 9 de maio de 2020

A Princesa e a Ervilha

à tua porta, tremendo de frio,
numa noite de lua cheia
a enganar a escuridão,
deponho o meu futuro,
com as mãos caídas, cativas na dúvida,
o sangue amotinado nas veias
o choro calado,
a clamar por ser grito, nos olhos.

consigo entrar,
tornada estilhaço transparente,
com o embalo do vento.
e de gestos recolhidos
vou-me insinuando para lá do discurso
para me infiltrar na tua insónia sem que notes
e de ti me alimentar mais uma vez.

já não tremo.
permaneço.

morro da vida que me dás a cada sopro
e descubro o modo de beber o céu
até me dissipar nos teus lábios
suspensos no meu nome.

depois sorvo o teu ser
quase por inteiro
nesse quarto íntimo onde não caibo
enquanto me fazes a cama com mil colchões
para que eu não te possa tocar.

lá no alto, porque sou uma verdadeira princesa,
ainda sinto nas costas
o teu imenso desalento,
disfarçado de ervilha nas frestas do soalho.

e só então pergunto,
descendo ao teu luto:
quando te vens deitar?

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Bela Adormecida

no alto da torre, isolando-me muito além do necessário
faço likes no teu perfil,
não vá o mundo desconfiar que te perdi.

já não desço os degraus mesmo que morra de sede,
nem transponho a porta.
habituei-me às alturas e às janelas cerradas.

em balanço autista, deixo-me ficar
por vezes nua, já que ninguém me vê,
outras vestida de farrapos carregados de azedume
que me atiram ao chão de cada vez que me levanto.
sou noite inflamada,
monumento de palavras, aqui deixada para contemplação futura
a esvair-me em lágrimas, a deitar-me com o silêncio
enquanto tu vives,
aí em baixo, na sombra,
entre o arvoredo e as redes sociais.

tudo o que é nosso está aí e aqui
e é tudo excesso como os espinhos das rosas,
as tempestades no mar,
mas também ausência,
príncipe enlutado, abraçado ao vazio,
a cobrir de negro o nosso amor.

eu nunca perco a pose, sou a musa do abandono,
a inspiração virtual,
e na batalha do ódio ganho sempre.

mas tu ganhas aos versos.

são facas na minha carne,
o afiado fuso da roca que noutra história me adormeceu.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Penélope

neste tempo espartano,
inacreditavelmente igual a outro,
o dos nossos antepassados,
vedado à ambição da plenitude,
(comida na mesa,
vinho doce pelas festas,
tecto e cama, roupa lavada,
nenhum destino maior a que aspirar,
igualo-me à natureza,
qual folha ao vento,
pólen de flores,
pássaro entre corolas
(e já não é pouco.

o sonho teima, porém.
mesmo neste tempo espartano,
em que nada se pode desejar,
não consigo evitá-lo.

nesta casa que é uma ilha,
Ítaca inundada de luz, mas vazia até ao cume,
perduro humana, e envolta em fumo,
sem nitidez ao reflectir-me nas gotas unidas da água do banho,
ainda te espero.

e diariamente teço e desteço a memória
materializada em laços e nós de fios de cabelo branco,
mais grossos que os outros,
quase agasalhos,
que anunciam o teu regresso:

o abraço mais longamente sonhado.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Mais um quarto crescente

um tempo de incerteza estugou-me o passo.
de repente a pressa de chegar a um fim
voltou-me para o princípio,
o bem maior de um novo começo,
e um turbilhão de ondas
desfez-me contra as cintilações do passado,
ainda vivo do outro lado das noites quietas.

adormecida, julgando-me desperta,
de olhos turvos, fingindo atenção,
de tornozelos presos a correntes
a ensaiar a prudência,
passei as mãos por todas as estações
e direcções,
escolhendo a mais dolorosa
para te poupar ao drama de me veres definhar
enquanto te ouvia enumerar desilusões imponderáveis
e disparar invisíveis gritos
contra os meus poemas quotidianos.

músicas e danças de todas as nações fizeram-me companhia,
a mil trabalhos me entreguei,
sem argumentos que pudessem atrasar a morte,
e na lua cheia encontrei-me com o remorso,
de garganta em nó a pedir-te perdão em sonhos,
por orgulho inefável,
na manhã seguinte.

agora que o quarto cresce, nem acredito no que vejo:
esta boca fechada já se fundiu na tua,
este lençol deserto chegou a ter a forma do teu corpo,
estas cinzas, este pó a cobrir tudo
foram outrora o nosso amor.