quarta-feira, 6 de maio de 2020

Penélope

neste tempo espartano,
inacreditavelmente igual a outro,
o dos nossos antepassados,
vedado à ambição da plenitude,
(comida na mesa,
vinho doce pelas festas,
tecto e cama, roupa lavada,
nenhum destino maior a que aspirar,
igualo-me à natureza,
qual folha ao vento,
pólen de flores,
pássaro entre corolas
(e já não é pouco.

o sonho teima, porém.
mesmo neste tempo espartano,
em que nada se pode desejar,
não consigo evitá-lo.

nesta casa que é uma ilha,
Ítaca inundada de luz, mas vazia até ao cume,
perduro humana, e envolta em fumo,
sem nitidez ao reflectir-me nas gotas unidas da água do banho,
ainda te espero.

e diariamente teço e desteço a memória
materializada em laços e nós de fios de cabelo branco,
mais grossos que os outros,
quase agasalhos,
que anunciam o teu regresso:

o abraço mais longamente sonhado.

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