sexta-feira, 30 de maio de 2008

Titânia

as noites perdidas no bosque, a beber e a brindar e a reluzir e a brincar às escondidas com oberon e os seus acólitos, colaram-se às tuas asas, descolorindo-as com o perfume orvalhado das horas escuras. e em mim depositaste o vaporoso tecido matizado que noutro tempo usaste para voar.
assim passou a ser-te mais fácil encontrar-me e para mim impossível adivinhar-te, apesar do colar de estrelas que desde sempre te adornou o pescoço e dos vestígios de suspiros que há muito se embrulharam nos teus cabelos.
estranhei.
nos meus sonhos ainda tocavas harpa com hábeis dedos brancos e inundavas de luz o caos do arvoredo. ainda tremias de lascívia ao crepúsculo e reinventavas os teus feitiços uma vez ao dia para me garantires uma surpresa por manhã.
mas na verdade oberon tinha já saqueado a tua beleza celeste e guardado para si os teus poderes. aprendeu a ler-te e seduziu-te, ordenando os teus ardis como planetas em eterna órbita em torno de magias já gastas.
só assim poderia ter-te.
mas tu, rainha das fadas e no cosmos decifrado pelos mortais a mais brilhante lua de urano, eras minha demais para permaneceres acesa nos braços dele.
e um dia vieste ao meu encontro, sem que eu já te esperasse.
lenta e discretamente, sem que eu pudesse sentir-te aproximar.
e disseste: dou-te as minhas cores.
serei o teu satélite, disse eu.
e fiquei a rodopiar na tua pele de puro sol.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Na fé

sempre que o céu se enfurece, o lento edifício do nosso amor entorta-se como plasticina. o meu coração contorce-se na sua pequena caixa almofadada e o teu encolhe-se até se perder na escuridão molhada do teu interior.
mas há janelas teimosas que se abrem para a luz e se fecham à ira. janelas como cristais flamejantes que nos agarram pelos colarinhos, nos viram para dentro e nos desviam da tentação de saltar.
a paisagem lá fora é de cinza, dizes.
e eu digo: a cor está na tuas mãos.
então pintamos de novo as paredes e revestimos a cama de lume brando. consertamos os degraus do sótão e bebemos a água turva do tecto nublado.
e plantamos os pés nos vasos. e acendemos velas no sangue. e podamos os ramos da cabeça.
e acariciamos a fé para que não nos falhe, agasalhada em palavras de pele e soluços de sol e gestos de paz límpida e silêncio sábio.
até beijarmos as faces leitosas da lua e adormecermos de braços e sonhos entrelaçados.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Inconsequente

passeavas nua pelas tardes de areia
acreditando que flutuavas.
um rumor de praia molhava as conchas, firmes testemunhas do teu desfile solar. uma brisa afagava a cor dos teus pensamentos, que calavas por vergonha da sua insidiosa fragilidade. e um gesto de mar amplificava-te os ombros e projectava a tua sombra nas dunas redondas onde eu me sentava a edificar palácios de paus e pedras e jardins desertos.
eras como um barco luminescente a lamber as vagas, uma ilha aérea a abraçar a terra, um sopro líquido no âmago das nuvens litorais. e eu tentava prender a vista ao horizonte e os dedos precisos às minhas construções.
em vão.
nos meus ouvidos soava indelével o choro sensual do tango. o fole do bandóneon retesava os meus sentidos e imobilizava-me o corpo incompleto, antes ondulante e sedento e tão incoerente como as marés vivas de setembro.
eu permanecia nas aleivosas e brancas dunas, de mãos obreiras e olhos gulosos, sonhando em silêncio o instante das nossas bocas ajustadas, das nossas peles fundidas, da nossa respiração misturada.
mas só as escarpas me entendiam.
o sol descia lânguido pelas rochas pisadas e segredava-me verdades quase críveis.
amanhã serias para mim e eu poderia levantar-me e caminhar.

passeavas nua pelas tardes de areia
e às vezes acenavas-me de longe.
um dia paraste ao alcance da minha arquitectura de pináculos e quadrilóbulos, nichos, dosséis e orlas ornamentadas, círculos concêntricos e arcos geminados ogivais.
havia espanto e desdém no teu rosto, mas também ternura a infiltrar-se suavemente nas tuas rugas de expressão.
disseste: quando terminares, passeio contigo.
e eu disse: não há prazer consequente.
ergui-me e abalroei o meu monumento inacabado.
estava pronta.
nunca gostei de inaugurações.