terça-feira, 6 de maio de 2008

Inconsequente

passeavas nua pelas tardes de areia
acreditando que flutuavas.
um rumor de praia molhava as conchas, firmes testemunhas do teu desfile solar. uma brisa afagava a cor dos teus pensamentos, que calavas por vergonha da sua insidiosa fragilidade. e um gesto de mar amplificava-te os ombros e projectava a tua sombra nas dunas redondas onde eu me sentava a edificar palácios de paus e pedras e jardins desertos.
eras como um barco luminescente a lamber as vagas, uma ilha aérea a abraçar a terra, um sopro líquido no âmago das nuvens litorais. e eu tentava prender a vista ao horizonte e os dedos precisos às minhas construções.
em vão.
nos meus ouvidos soava indelével o choro sensual do tango. o fole do bandóneon retesava os meus sentidos e imobilizava-me o corpo incompleto, antes ondulante e sedento e tão incoerente como as marés vivas de setembro.
eu permanecia nas aleivosas e brancas dunas, de mãos obreiras e olhos gulosos, sonhando em silêncio o instante das nossas bocas ajustadas, das nossas peles fundidas, da nossa respiração misturada.
mas só as escarpas me entendiam.
o sol descia lânguido pelas rochas pisadas e segredava-me verdades quase críveis.
amanhã serias para mim e eu poderia levantar-me e caminhar.

passeavas nua pelas tardes de areia
e às vezes acenavas-me de longe.
um dia paraste ao alcance da minha arquitectura de pináculos e quadrilóbulos, nichos, dosséis e orlas ornamentadas, círculos concêntricos e arcos geminados ogivais.
havia espanto e desdém no teu rosto, mas também ternura a infiltrar-se suavemente nas tuas rugas de expressão.
disseste: quando terminares, passeio contigo.
e eu disse: não há prazer consequente.
ergui-me e abalroei o meu monumento inacabado.
estava pronta.
nunca gostei de inaugurações.

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