quinta-feira, 31 de julho de 2008

Aos pedaços

vivia como um insecto mortífero à míngua de redenção, com o sangue dos fracos a escorrer-me da boca, as antenas em alerta, as palmas das mãos coladas de gula.
o destino não era mais que uma silhueta macilenta, recortada a tesoura romba sobre o negro da noite. e eu não podia entender o amor senão quando o esmagava entre os dedos e o juntava às bagas do desejo no gigantesco almofariz das sensações.

até que chegaste e me afagaste as asas, há séculos amachucadas sob o peso do tempo. alisaste-as com cuidado, sorriste-me, beijaste-me. e finalmente ajustaste-te ao meu abraço, como se pudesses ficar.
mas aos poucos toda tu te fragmentaste.
e aos pedaços dormiste comigo, aos pedaços me levaste em viagem, aos pedaços ofereceste-me sonhos luminosos, aos pedaços foste só para mim.
quando reparaste em ti mesma, despedaçada como montanha vergada à erosão, tinhas já perdido metade dos fragmentos em lugares que nem sequer conseguias recordar.

e então disseste: ajuda-me a ser inteira.
e eu disse: vou a caminho.
acordei na penumbra, abrindo os olhos lentamente, até os habituar à luz. depois bebi um trago de veneno arco-íris e pincelei a alma de cores temporárias, por um momento minhas.
o elixir da esperança continuou a reluzir no cimo da cómoda, mas ignorei-o. afinal, sempre preferiste a efémera máscara da alegria, o prazer que morre, como gente ou terra, de desgaste.

saí da pele, engoli o mundo e entrei em ti.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Uma romã

quando o meu pensamento a si mesmo se pensa, a nossa história é-lhe estrangeira como uma romã a apodrecer num quadro surrealista.

há areia movediça nestes degraus que subimos, misturada com o amor, essa metáfora de fogo e vento, que às vezes é apenas um quarto vazio onde deitamos as rugas para descansar.
há geada febril nesta casa que enchemos, misturada com o amor, essa fragrância teimosa, que nos pesa como um bolso carregado de pedras.

duas bocas coladas não são amor.
lamberes-me como a um gelado não é amor.
tocares-me para que estremeça não é amor.
teres-me na cama não é amor.

antes ouvisses os meus silêncios a ribombar como trovões entre paredes de carne.

o que eu sou está na minha pele e sob os meus cabelos e a pulsar no meu peito. o que tu és encontra-se espalhado pelo mundo, na companhia dos outros, em estilhaços insignificantes que tu não queres unificar e eu não posso recolher.

há areia movediça nesta ampulheta onde o nosso tempo se esvai.
e vagas gigantes de nada no teu mar.
engolem-te a voz, despem-te o sentido, desfazem-te em nortada.

há uma geada febril nesta romã que habitamos.
e nos meus olhos, lágrimas que não sabes ler.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Vulcano

conta a lenda que vulcano era coxo. dominava o fogo e esculpia em ferro as faíscas todo-poderosas do seu pai e as armas guerreiras de outros deuses, os seus predilectos do olimpo. artista incompreendido, como todos, irava-se com pouco e vivia consumido pelo ciúme, desejoso de reconhecimento mas frustrado pela indiferença, tanto a celeste como a terrena. a sua deformidade física envergonhava a mãe, juno, que nela via a personificação dos seus erros, e o pai, júpiter, incapaz de entender a imperfeição.
expulso do céu e repudiado por todos os que amava, vulcano procurou consolo na sua arte e energia nas memórias da infância. em vão: o seu coração estava tão corrompido como o seu corpo e demovia-o de qualquer acção generosa. tratava mal a mulher, a bela vénus, por todos os deuses e semi-deuses e homens desejada, porque nunca acreditou na sua fidelidade, muito menos no seu amor incondicional, tão habituado estava a ser traído. e com as suas constantes desconfianças, acabou por empurrá-la para os braços do próprio irmão.
assim pôde reduzir todos os seres às suas perversões, só para elevar-se a si mesmo como o mais virtuoso, puro e belo do universo, apesar da fealdade exterior.
porém, não conseguiu alcançar os seus intentos: os seus motivos nunca foram os mais nobres, a sua arrogante vaidade sempre se sobrepôs aos bons sentimentos.
afinal, ele nunca fora melhor do que os outros, apenas diferente. como eu.
vulcano era coxo.
mas podia ter sido amado. bastava-lhe saber amar de volta.
mas ninguém soube ensinar-lhe como, ninguém soube indicar-lhe o caminho e mostrar-lhe que esse caminho seria mais valioso que a sua arte. que cada passo seu, mesmo manco, trémulo, incerto, dado em sintonia com outro coração, poderia de facto conduzi-lo à felicidade.
como acredito que os meus passos me conduzirão a ela.
se tu souberes guiar-me e eu souber levar-me pela tua mão.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Permanência

misturaste os pés na água e a cabeça no coração. o mar mostrou-te a eterna agitação do universo e a fragilidade do tempo. a brisa aderiu aos teus cabelos, desenhando-lhes um brilho estival.
e o sol demorou-se na tua pele, o suficiente para te sentires fervilhante como o lume dos olhos das raparigas à conquista dos outros e de si mesmas.
sorriste-me.
e eu sacudi a toalha e o medo para dentro da praia e sorri-te de volta, de rosto mergulhado no teu, a ouvir a tarde a passar num burburinho quase musical.

e nesse instante soube-te minha, como se fosse possível ter alguém. delírio apenas. mas dos que aconchegam a alma.

então
a ranger os dentes e de esperança apertada nos punhos, enfrentei os meus fantasmas. um a um, até só lhes sobrar aquele vago cheiro a mofo de coisa abandonada.

tu fervilhavas ainda quando te revelei os meus segredos.
mas já não sorrias.
nua e inexpressiva na esteira que debroava a duna, de lírio pintado no peito e névoa mística no olhar, viste-me depor as máscaras e virar todas as mentiras do avesso e as dúvidas de pernas para o ar.

do que fui só restou um sonho pulsante e uma cicatriz escarlate.
paro aqui, disse.
e tu, consumida nas chamas da permanência, disseste:
fico em ti.
e no meu corpo te alojaste.
até agora.
mas às vezes sinto que foges em busca de outro fogo. escorregas para o mundo como a areia entre os meus dedos e voas, tornada vento nas janelas entreabertas dos meus dias.

sempre que uma verdade se extingue, há outra que se acende.
e só arde enquanto é nova.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Momento

escuto o resfolegar das asas dos anjos, que nos resguardam dos ímpetos da terra, e viajo nas tuas costas.
as minhas mãos desenham histórias de amor e nuvens frescas entre os teus ombros, passeiam no arco da tua espinha, na volúpia que respira pelos teus poros, na humana voz que se esconde na constelação de sinais sobre a qual te deitas quando me procuras a boca com a boca e os olhos com os olhos.
e perco-me nas sensações enquanto a noite morre lentamente contra as janelas e a brisa atlântica se encolhe aos teus pés, enroscada no pêlo do gato.

lá fora, a lua aponta setas de luz aos telhados e às folhas das árvores que murmuram esperança em palavras que só nós entendemos.
no quarto, os anjos tropeçam no vapor palpável da nossa respiração.
e tu embrulhas-te em mim e eu em ti.
e misturamos pele e saliva.
e disparamos rajadas de beijos e granadas de desejo.
acerta-me, dizes.
desconcerta-me, digo eu.
e obedeço-te. e encontro-te. e desmancho-me nos teus braços.
e envelheço devagar sem que o tempo me adoeça.

e amo-te como se não existisse mais nada.