terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Enquanto a massa

ponho-te ao peito, meu amor sem palavras de cortar,
e em sossego levo-te para casa
(de poema murmurado na rebentação das ondas
enquanto o teu mais belo par de olhos
trespassa de luz
as noites solitárias da minha memória.

as pedras brilham como luas cheias
à medida que sobre elas avançamos
(remorsos nenhuns, pés completos
os quatro
e as mãos quentes como conchas fechadas,
neste outono sem rasuras,
onde não reconheces o desfolhamento
que a terra te mostrou à entrada da infância.

não sei se há bibliotecas no mar,
dizes, ou igrejas sem enigmas nas nuvens.
e dás o braço ao meu coração
(nove meses sobranceiro aos filhos que criei
enquanto a massa ferve e me beijas.

eu
ainda antes do jantar
assisto um supremo instante
ao nosso milagre intacto.
e ponho-te ao peito, meu amor sem lágrimas de corroer,
pronta para negar o passado mais uma vez.

não têm rosto os pássaros que partem, digo
(nem os de forma humana,
na celeste brisa oceânica desta cidade
onde nos tornamos de um sangue só.

tu
vertes um suspiro para dentro de mim e
(sem preces
serves a massa.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Na última pedra bordada de sal

dobro a onda que me enrola
de flanela rente à tua respiração litoral
e estico o mar nos olhos
(tingidos de cinza,
espreitam-te a morte nas acções distantes.

as chamas arranham-me o espírito (sem novas palavras
desfaço
a ternura em farrapos, as dores em gotas
(altos luxos
despenham-se das nuvens que perguntam as horas
despenham-se no sítio das cantigas, do medo natural
despenham-se sem coroa nem brilho
na última pedra bordada de sal
(e lavo os dentes contigo, lado a lado,
a perda de tempo prevenindo.
todos os dias
bebemos demasiadas certezas, digo.
e tu dizes, nada há mais instável que o desejo.

sob o mistério da luz ofereço-te as mãos em florido desespero,
enquanto roda soul (your love was meant for me
na orla do sol
e os teus gestos reservados ao amor repetem-se no meu corpo.
todos os dias
o consolo chega tarde, digo.
e tu dizes, também as folhas falam ao vento sem que as oiçam.

e os meus gestos (vulneráveis, cantando
abraçam a longa travessia de regresso à solidão.

como sabes,
espera-nos outra vida.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Entre estas paredes

o amor era agora,
quando dávamos as mãos à minha incontinência romântica
e atravessávamos sete colinas e um sonho
no teu silencioso olhar.
o amor era agora,
quando não largávamos a cama enquanto há sol e há chuva,
dois vulcões de carne sem ponderação nenhuma
e as horas a esvair-se nos lençóis.

saíamos de braço dado,
como as marroquinas sem malícia
e os casacos até aos dentes fechados como cartas.
havia festa no cais do sodré, os sorrisos perdendo-se pelas esquinas
e resvalando em desperdício pelas sarjetas.

a música já esteve pior, dizes.
e eu digo,
só não danço sem ti.
até voltarmos para casa.

o amor seria agora,
enquanto a massa dos crepes escorrega na sertã
e nós em turva lucidez a misturar o gershwin na canela.
o amor seria agora,
com a minha boca molhada de visita à tua pele.

o amor seria agora, entre estas paredes.
e fácil. mas a cidade não vê.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Pelo sim pelo não

à cautela abro um pouco a porta e deixo entrar
a tua história (luz fendida em solo gasto,
todos os momentos
das tuas outras vidas.
e oiço-te. vasculho-te. aliso-te.
e digo,
tens direito a não saber como viver.
e tu dizes, faço-me à ternura
pelo sim pelo não.

arranjas, como o cabelo, o coração
antes de saíres à rua e voares
do meio-dia ao desmaio, até aos meus braços
(demora só mais cinco minutos, vale a pena
e vês-me enfim, reconhecendo
o meu tamanho de nada e pó
(no teu colo redentor.

pelo sim pelo não ao dependuro largo
no hall os segredos (que me vestiam
enquanto o sol incendeia
os teus olhos mendigos
(pedem fulgor à corrida do rio
e encontram-me ao poente.

a oriente
minaretes perfuram o céu,
crianças morrem soterradas,
mulheres em asfixia gatinham de preto.
e tu ainda te queixas,
no passeio liso,
no jardim suspenso,
no tempo limpo,
a arrancar espinhos ao amor.
dizes, já não sou a mesma rapariga que sobreviveu
ao chocolate do natal de oitenta e oito
(vale à flor da cascata.
mas ainda te derretes em calda
(fio a metro que te mede,
digo eu.

e o mar canta pleno
universal, nas nossas mãos abertas
uma na outra,
pelo sim pelo não.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O rio que sei

trocas de chapéu mais uma vez
e sais para a noite à espera do fim.

imaginas gravatas nos decotes,
andas sem tréguas pelas pedras irregulares,
adivinhas derramamentos de sal nas caras bêbadas.
e a cada curva inventas segredos líquidos,
sem medo de deixares outra vida a meio.

encontras-me em tinta fresca na ponte das duras penas.
não há esquina nenhuma por perto,
só um chilrear sem asas a bater no caminho,
o rio que sei ainda branco a guardar o silêncio,
a medida certa de luz amarela.
falas-me da cor e do espírito guerreiro,
das imagens que sentes e dos gritos que dás.
queres saber o que poderás ter e te ensine o rumo,
a lua parada de todo
a prometer-te pouco e vago descanso,
os joelhos trémulos, os olhos a boca as mãos secas,
uma dor inexplicável no pé direito.

eu elevo-me ao muro da ponte num fio de palavras
e não danço.
falo-te do amor que pede,
mas nada exige. das coisas transitórias imateriais,
do sonho que aqui morreu há onze anos e um dia,
do desapego.
depois acendo-te um cigarro.

fazes-me chorar, dizes.
e eu digo, preferia fazer-te.
então recolho-me ao correr da página
e tu reapareces em poema.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Há coisas que não têm palavras

esquecida das duzentas dores que carrego no peito
sou capaz de voar no teu breve abraço,
anterior à rotina da manhã.

e o dia começa.

na cama ainda quente ficou o desalinho,
nas mãos a nudez, gemidos misturados a pender das cortinas.
e junto à nuca suada as velhas decisões que te tenho lido ao acaso,
como notícias de jornal.

sorrio por seis metros, entre o quarto e a banheira,
e conto-te os sinais sem que notes.
na água do duche deslocam-se de vida,
minúsculas ilusões em carne escura a impor-se aos meus olhos,
mais que o umbigo ou a linha das ancas ou o declive dos ombros,
e procuro cuidar do que trazes dentro
enquanto me ensaboas.

e o dia espera.

dos copos por lavar à cabeceira
espreitam lágrimas do vinho que ontem
nos encheu de precária alegria,
oxidado de vez.
e tu viras-lhes as costas para pintares as unhas.

e o dia avança.

redefines as sobrancelhas, soltas-te no espelho,
ignoras o meu desejo.
há coisas que não têm palavras, dizes.

eu visto-me de bálsamos de ternura disfarçada
e afasto as paredes ao encontro da tua pele.
em vão.
todo o inefável é ausência, digo.

tu vês as horas em vez dos meus lábios cosidos ao teu nome
e apertas os sapatos.

arrumas o tabaco, as chaves, os segredos

e o dia leva-te.

eu baixo a cabeça de sonhos e já ao volante penso,
o amor é de pedra. mas eu, não.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Serra

já a noite engoliu os rochedos

na varanda teimam
as memórias a tremeluzir nas velas,
ainda te espera um copo de vinho
uma ladainha fraterna
um palácio de beijos.
e sentas-te num degrau de pedra
para rezar
missas inteiras com aroma a love story,
as horas a passar-te confusas pelo sangue
as mãos nervosas por distracção,
a música em vez da língua
o sonho em estado de pele.
e os uivos em eco.
eu chego-me a ti
com as minhas elaboradas concepções do mundo
o casaco de lã, os cigarros
um tremor nas pernas com cadência de tango
dois suspiros para tentares agarrar com os olhos
e um presente de instantâneo amor
que desembrulhas sem sorrir.
dizes inverosímil,
que a queda não te aconteça.
e eu digo,
nunca antes de me seres essencial.

pisamos atabalhoadamente
de mãos dadas, à tua vontade
os juncos que deveriam estar no rio,
chão nosso por um instante,
e só o teu desejo fala ao meu consolo.
depois
as árvores calam-nos
quando nos encostamos
a ternura abre-nos um sulco na carne
e mistura-nos como ar.
eu digo impassível,
há luar nos teus braços.
e tu dizes,
todo o abraço tem uma gota de azul.
então afastas-me
cambaleando desligas as estrelas
sobes devagar os degraus de pedra
e puxas-me para casa.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Sonata

na ânsia fátua do segundo andamento
(dolente
que abstracta vibra no meu peito à espera de continuação
tento interminavelmente viver para hoje
(sem pressa.

estremece comigo o teu corpo
em milagre acontecendo no calor
das minhas mãos.
investigo-lhe os sinais escavados na pele,
mapas em relevo que de noite vejo melhor
e em silencioso rosário
oiço avançar
como bravos navios nas pautas imateriais.

do espelho recorto as chamas,
crepitante chuva de pessoas caídas
diluindo-se breves
nas águas da memória,
lamentáveis como mortes prematuras,
para guardar no fundo dos erros mais imprudentes.

e esqueço as violetas de lume
(dengosas
que ainda brincam na imagem,
como na outra vida, minha
sem a leveza dos beijos.

e apago as manhãs sempre velhas
(devagar
como corvos, enlutadas
apesar do balanço do sol nas janelas
que diariamente de coração aberto
se fechavam à entrada dos sonhos.

agora contigo
estremece
(pouco a pouco
o meu corpo
em cascatas
(variantes
de remanescentes harmonias.

e no teu abraço
(em todos os tempos
atraso
a conclusão.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Rotação

enquanto acordas, eu
lucidamente consigo ouvir-te a largar dos membros
o repouso.
vejo acender-se claramente
essa pequena, como eu
temerária chama
de terno amor jovem (à
um quarto para as duas,
afadigada e radiante
como os anjos de luz, as ameixas e as alvoradas tardias
que à volta dos teus braços se enrolam,
pulseiras de lume
em rotação,
rosas dos ventos com sentido,
ramos frágeis numa equação em espiral
sem esfera definida
ou categoria sequer. liberdade em movimento.

enquanto tu,
nua,
acordas, eu (à
um quarto para as três,
sorrio horas adentro
em contido júbilo, mas real.

és minha e viva
e quase te permites aceitar
a vontade da alegria, o meu tamanho e inclinação.
acordas (à
um quarto para as cinco,
para o meu rosto sonhador,
e tocas-me
até ao coração enquanto o mundo dorme
e os morcegos cantam
ainda.

abres os braços, as pernas,
a alma,
e eu (à
um quarto para as seis,
esqueço-me do tempo
e naturalmente
entro em ti.

terça-feira, 12 de julho de 2011

De feição

corre de feição este vento de amor possível
a desatar nós à memória,
a fibrilar o algodão das nuvem cinza
para que perdure,
a soprar açúcar (colado aos dentes
ao ouvido deste animal desvairado que
(repetidamente
marra de frente
(sem guia
contra os muros do tempo.

avança de feição este vento
(exactamente
para onde deve ir,
exactamente
à medida
da silhueta do meu desejo
desenhada na tua pele.


voa de feição este vento de imodesta vontade,
vai sem alarme pelas margens da ternura
a despejar canções sobre os meus dedos
e a beijar-me a nuca de brisas solares
(como essas que à noite me entregas
na almofada virada a oeste,
alinhada com a janela dos autocarros

mas falta (talvez
delicadeza ao mundo
para segui-lo,
tomá-lo nas mãos e dividi-lo
(como pão
pelos dias magros da cidade.


morre-me (pois
de feição outro vento
recortado no espelho

à imagem do que não és.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Dedicatória

pergunto-me como estará marraquexe este verão.

em madrid há portuguesinhas atrevidas
ao méxico vou de tequilla
goa arde-me nos olhos.

atavio-me para o mundo por ver, a mala o chapéu
cigarros e cinto
a fronteira só azul
o tempero de não saber
sol e vento na pele quente

e escrevo,
desde que passe por corações humanos
na viagem de tempo a ruir
dedico-te o meu passaporte.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Este é o meu encontro

este é o meu encontro contigo.

preparo-me de aromas e visto-me de música transparente,
há muito cansada de me envelhecer neste canto
a fumar sarcasmos
sem objectivo
a cavar
e a enterrar sombras
em camas de trigo.

analiso-te as unhas e o tremor
à chegada,
dois pingos de ternura depois
aterro no teu abraço
e abro a boca quase tua. digo,
o medo é um amigo falso.
e tu dizes, como sabes tenho a fé por baixo do verniz.

agora, por mais bravo
sem os teus olhos é trivial
cada gesto
meu.

pede anteontem.

terça-feira, 14 de junho de 2011

São as horas

longas são as horas em que redesenho o teu rosto

na superfície indefinida da memória
só o espelho sabe que ainda me mexo
enquanto retomo o tremendo amor
que numa noite despida me entregaste,
muito antes de te escrever o primeiro poema
e do efeito secundário dos teus olhos na minha boca.

longas são as horas em que me adio pelo teu corpo

na superfície segura da memória
observo-te a dançar she works hard for the money
e depois a fatiar corações numa tábua de pinho
como se não tivesses outro quotidiano que te servisse.
pergunto-te por mim,
se me vês e se
ainda te lembras do sismo suado que nos fendeu o peito.
tu dizes,
sou uma menina sem maldades,
e temendo que eu duvide apressas-te a puxar o decote.

longas são as horas em que te cubro de terra

na superfície calada da memória
em êxtase olho a paisagem que me resta até ao fim da fome
e desconvoco o cheiro a flores e os violinos.

tu encostas-te ao parapeito e sonhas comigo.

sábado, 11 de junho de 2011

O silêncio é de pedra

é ascendente o trajecto que me leva aos teus braços.
vou resoluta como quando atava fios de pranto aos pulsos
e temia os teus olhos.

atropelo a mulher descalça
que caminha no sentido contrário do amor,
a atirar-se contra os passeios
e a espreitar pelas janelas.
ignoro o homem de cinza que vende
pantomimas tão perfeitas que parecem vidas
e parece feliz e sabe onde vou.

enfio pelas ruas impossíveis, pelas arestas
pelos passos sombrios.
na subida
não reparo nos anjos como dantes
nem nos lábios bravios das raparigas,
às vezes encosto-me a uma rocha e durmo
e aos sábados paro para sonhar.
pela manhã
lentamente dou corda ao relógio da nostalgia
e na solidão que procuro encontro a tua voz que repete
o silêncio é branco
o silêncio é preto
o silêncio é de pedra

não parte.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Novas histórias de água trémula

enquanto celebras outro amor
e eu sei na carne que não chego a morrer contigo
tomo nova forma de corpo
e abraço vigilante as nuvens
felizes por serem
como eu e tu
vapor do ribeiro seco que nos foi cascata e maresia.

guardo o embrulho do último rebuçado que aqui comeste
e o desenho dos teus dentes à cintura.
tenho o álbum de fotografias, o disco das nossas vidas,
o estojo onde a tua vista dormia.
e viajo em chamas, implorando à noite que me cubra.

assim me encontrarás quando vieres:
no teu pequeno coração encolhida
e sem querer adornada a lume,
a inventar novas histórias de água trémula
contra a pena do teu desejo perdido.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Nem meio dilema

nesta montanha onde me sento a agitar ruídos
finjo meditar além dos teus olhos famintos
(cega de palavras perfeitas
no silêncio que o teu vagar me impõe

trago as lições aprendidas
a pele revestida a desígnios morais
nem meio dilema. idealismo nenhum
e o peito em cratera, implodido de amor


como coisa que cura
a minha vida
é este caminho repetido
até ao cume onde me sento por vezes
encontro deus a esvaziar os olhos
e o tempo não passa

segunda-feira, 23 de maio de 2011

É o tempo das raparigas grisalhas

é o tempo das raparigas grisalhas
os ténis de velcro as madeixas
as unhas curtas o amor secreto
a agenda com mais horas que o relógio sem préstimo
o cheiro peculiar

e eu visto-te de lilases e espalho pétalas ao redor da tua imagem.

nesta inocência manchada
cobiço as tuas bonecas e o rosto impossivelmente belo
da florista que não vê os mortos
como eu quando me colo à fantasia
(tudo o que é humano tem limites?

o teu desejo contém dois vocábulos de açúcar
um se faz favor como morangos atirados ao lume
bolsos a transbordar de sonhos
nem um passo sem chão.
eu pago, dizes.

é o tempo das raparigas grisalhas
e a tua boca é uma acendalha nos meus dedos
pranteando em língua estrangeira

ao luar só peço que não morras enquanto vou
à mercearia da atalaia comprar rebuçados.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Arrumo atrás da cama as marionetas

nenhum bocado de mim é teu
a partir de agora
nada mais quero dizer-te
senão que no espelho me resto,
completa na água que a alma me apaga
e se evapora para dentro da moldura
onde ainda ontem te reconhecia.

arrumo atrás da cama as marionetas,
que de certa maneira à noite me abraçam
até me adormecerem o sangue,
embrulhadas de enfarinhado alumínio
para que não mais me falem.

devo-lhes a contenção dos últimos dias
e a jornada impetuosa
que ao teu colo me tirou
mas não sei como
sem palavras
do feito recompensá-las.

cobro-lhes entretanto
esta viuvez em chamas
que sigo como doutrina
até deitar fogo aos teus olhos
na memória reflectidos.
e o riso inseguro que espalho pelas mesas
basta-me desta vez,
enquanto não te espero no banco de jardim
e à entrada do auditório,
no cume da serra e à porta da igreja,
no canto do café e no rochedo da praia,
com os bolsos repletos de fios inúteis
embaraçados como quando por descuido
deixava cair as marionetas
antes de chegares
e as mãos felizes à chuva,
vazias de papéis.

nenhum bocado de mim é teu
a partir de agora
podes segurar-me a cabeça no eléctrico
quando largarmos a graça.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Quando éramos água

nos teus falsos vinte anos
perguntas ao coração ferido
se pode ser feliz para o resto da vida.
sem saberes o tamanho do que te resta,
escondes-lhes a inquietação com que adivinhas a noite
e a firmeza com que fechas os olhos
quando me vês passar.

podias ter tido tudo
quando éramos água e eu tinha fome de humanidade
e tu tinhas um esboço de sorriso
para me dar depois do amor.

mas não quiseste,
para que pudesses
ser tudo,
em encantado despojamento.

a posse é erro, dizias.
e eu surda dizia, abraça-me para lá da pele.

depois o ardor da memória fulminou-nos:
o teu nome encolheu na palma da minha mão
e eu caí para dentro do teu esquecimento.

agora que somos de pedra no correr do tempo,
és o que tens
e a cor do cabelo.

eu descanso.

sábado, 30 de abril de 2011

Saber

quando o desassossego entrou na casa da família avariada
o alento trepou acima do medo
deslocou membros
e cresceu à desmesura

as arcas há décadas trancadas reconheceram as mãos
as fotografias os postais
os sorrisos revelaram-se aos olhos
e resvalaram em abraços de partida e desilusões

(nunca poderia ter acontecido
nas praias para onde costumava naufragar,

a permanência é que a tolhera)

agora o pai dizia, tenho sementes de viagens nos dedos
e a mãe dizia, sobra-me tempo para lembrar o que perdi
e a irmã dizia, o que pode ser dito tomará a minha boca

e havia telefones a tocar e janelas abertas e canções de protesto.

o rapaz calava.
sabia o saber tão frágil como a glória.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

A face do amor que te tenho

da vaga lembrança ao reconhecimento absoluto
te vejo clara na dócil vaga de pássaros
que esta manhã me desperta.

em fino veludo há horas te enlaçaste
e eu aceitei o que o tempo quis,
tornei a ser-te espelho sem boca e deitei pó dourado dos olhos:
querosene oriental.

não sei porque te repetes na dureza.
se é por gostares da fibra que nos teus membros serpenteia
de cada vez que só dois passos nos separam
se te habituaste à arte da fuga
temes o desejo
ou preferes imaginar que me tens,
mas sei que o teu silêncio tem gritos de rematado tédio
que ao teu ouvido sopram juventude
enquanto te envelheces.

percorro os teus passos em rotina
sem sair da cama
inclino-me perante a tua peremptória existência.

e levanto-me porque umas noites te vejo.

a face do amor que te tenho é esse rosto que sei de cor.
atrás dele escrevo o que eu quiser.

sábado, 23 de abril de 2011

Aos carris da perdição

tomo um copo de magia,
brindo copiosa à chuva
e num instante tudo volta à sua plenitude concreta,
teimosa como óleos essenciais de perfume
e todos os paraísos que inventamos para fugir de nós.

as folhas nos plátanos lutam contra o vento,
decididas a manter-se agarradas aos ramos,
como eu ao fundo da tua alma,
surgindo-te nos sonhos com o mesmo sorriso travesso,
anterior ao sofrimento,
com que te recebi naquela esquina da noite,
sola contra o semáforo,
ridícula num carisma desatento do mundo.

na vigília é fácil distraíres-te da minha ausência.
no sono colo-me à tua saudade como fungo à pele
carregando a doçura de quem nada pede senão alimento
e uma cama mole,
nem lavada nem lisa, onde respirar.
e sabes que muito tempo
pode passar até que me conforme a adormecer de vez.
porque ainda posso,
entro propositadamente nas carruagens erradas
que em círculos correm dentro de ti,
lagartas mudas como nenhuma mulher,
espiando o destino que em solitária liberdade julgas desenhar.

e tu abraças-me sem remorso
como se o meu corpo te pertencesse tanto quanto
os teus músculos e pernas
e as tuas corrompidas penas
e os teus amores coloridos
onde impiedosamente largas larvas de cinza.

depois levantas-te,
freneticamente sacodes roupa, rugas, lágrimas
e a tua fome sem solução,
e enfeitas o cabelo de flores,
tornada máquina de sedução de novo
ao serviço dos prazeres
instantâneos e das certezas felizes.

e de novo me abandonas
sem um olhar ou palavra
aos carris da perdição. onde sem sombra
me sento e te vejo partir
e partir
e partir
e repartir

um inútil poema diluído em vapor.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

No rebuliço de sonhar uma aldeia onde

chego atrasada à vida
no rebuliço de sonhar uma aldeia onde caibas comigo,
com rituais de colher alfaces,
pães a navegar ribeiros,
fogueiras de assar unhas burguesas
vermelho sangue, como o centro do teu sexo.

e paro à entrada deste coração de filigrana
tentando adivinhar para onde segue a humanidade.

que fazer da vaidade
de quem penteia a barba
entrançada de lodo?
que fazer da raiva
de quem é feito de pó
torrado na praia?
que fazer do remorso
de quem pinta de louro
as fitas dos cabelos?
que fazer do amor
de quem guarda ruínas
em armários chineses?

e as perguntas sucessivas afastam-me
desse único aglomerado de casas lacustres
onde podíamos ser felizes.

então chego-me a ti neste intervalo e digo,
toma a acetona e bebe.
tu abres uma narina de alívio
e deixas cair as caricas dos olhos
sob o sobrolho ajardinado minutos antes do verniz.

e de boca arreganhada
bebes-me até ao osso
enquanto ainda te lembras da última vez que voaste.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

No nervo

na minha vida secreta, a que habita os meus ossos
e me viaja no sangue e me desperta no sono
ou me embala na insónia,
chamo o teu nome e não demoras tanto.

(por que me pedes os beijos que não são teus
se sabes que vivo com os teus olhos
ao meu redor
como braços, ramos de árvore parados
nesta casa forrada de azul a gritar por novas janelas?

as manhãs, reconheço-as idosas,
a pedir pontes de ternura à hora do almoço,
prometendo em troca desaguar frescas nos miradouros da tarde.
as noites, finjo-as exuberantes,
a roubar a luz às estrelas quando lhes peço piedade,
tentada por um amor ruivo e a dançar
de pena cravada no coração.

e refugio-me no nervo onde a tua boca ainda me fala.

no beijo começa a vida, dizes.
e eu, língua soterrada de medo a soletrar a cidade,
mãos aflitas a pintar telas de rua e
o desassossego em todas as idades, digo
é o que falta do que desejo que me mantém viva.
a fé é o que resta aos infelizes:
caminham nas veias do silêncio
incapazes de renascer,
mas sonham
ainda.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Piões

não me lembro quanto te amo
porque também já não importa.

no meu mundo só importa
que os piões rodopiem
e não falhem o pão e os sorrisos
nem se esgote a imaginação.

só em presença
o amor se deixa medir.

terça-feira, 29 de março de 2011

De joelhos no futuro

de tanto em tantos olhos te procurar,
perdi os meus entre crepúsculos brancos
e bolas de espelhos:
luzes apagadas são hoje.
acordam vazios todas as manhãs
e de joelhos no futuro rezam como bocas a celebrar
a diária sobrevivência
da esperança.

coincidiram com os teus
por um breve momento que parecia estar crescendo,
até se estatelar contra a cicatriz
que no íntimo as tuas mãos esculpiam
sem que eu pudesse saber.

à sombra olhavam-te firmes,
ao sol amavam-te até ao último grão de víscera.
e deslumbrados sorriam,
mesmo quando à mesa te serviam perguntas
que comias e bebias pelo avesso
sem responder, e enquanto repetias
só o impermanente permanece,
impondo-me a evidência.

agora gostava que gritasses comigo
estes silêncios que partilhamos
enquanto subimos em caracol
esta escada altíssima,
de frágeis degraus rumo a exílios
cada vez mais distantes.

e me contasses como foi
a primeira noite em que me esqueceste.

a ver se reacendo os olhos neste terrível país,
estrangeiro de ti.

quarta-feira, 16 de março de 2011

E morres sete vezes

abro a porta desta casa moribunda
e para o último confronto te resgato.

amor não é combate, dizes. nem joelhos a tremer, digo eu.

e corro as persianas para te acossar
enquanto me recolho às claves de sol sobre o piano,
surda ao teu torpor na minha fúria cega.

tu baixas os olhos para a curva do meu colo
e cerras a boca num murmúrio próprio
dos que são velhos na terra, ainda que inocentes.
eu procuro não avaliar a manhã que tarda
pela noite que me abraça.
e às tuas mãos me atiro
em busca da minha própria idade. e brindo contigo
à memória secreta dos dias já mortos,
os únicos que deixaram de nos doer.

o desejo recém-nascido mal segura a cabeça, dizes.
e eu digo, a vida comeu-me a esperança de sentir.

cada sílaba que desentende o silêncio
faz-se ao poema e fala arrogante do que não sabe.
eu encolho os ombros e apresso-me a recoser-me
em coloridas linhas à tua presença
enquanto calo os amigos de papel
que sobre a secretária se insinuam,
certos de que hão-de seduzir o meu punho.

mas não me convencem.
não enquanto te impuseres tu à minha página em branco
com essa calma de quem se acredita a salvo.
e definitivamente não enquanto resistirem
paredes de vergonha em redor da nossa ira.

ataca-me, digo. e tu dizes, não te devo senão beijos.

em queda me encontras, delirando-me em universo.
em paz te vejo eu, migalha feliz à medida do que és.

e morres sete vezes no meu peito quando fechas a porta.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Cambaleio

a insuperável unidade dos nossos corpos (em breve apagados
dói-me como a natureza.

e escavo abraços para dentro.
e colo literatura à pele.
e em minutos me refaço (para te ausentar de mim.

sem sentidos cambaleio na tua resistência
(à meia-idade.

e fecho o documento.

vou no casco do poema
para me entregar em grito
no teu centro. ou para te encontrar
(onde não há palavras.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Carnaval

do amor que me tens, faz colares e cabeleiras.
deixa a angústia trancada no quarto
e vai dançar.
bem sei que é como a gordura,
vem sempre à tona por mais que não queiras,
mas estes são, concordarás, os dias certos
para esquecer.

quem não sabe não verá
o longe que estás de ti
e o quanto te fere a desastrosa passagem das horas
nessa solidão necessária
que o rilke te ensinou e desde a morte de kane
segues como verdade.

é tua a escolha, agora.
não abrir os baús
a cheirar a mofo
a velho,
pó que acumulas sob a pele.
e arejar as plumas.

junco de haste quebrada,
disfarça o sangue
arranha as janelas
brinca aos foliões.
destroço de sinfonia indignada,
mistura-te no ritmo eléctrico
e brinda ao porvir.


quarta-feira cai o pano
e reacendes o teu reflexo no espelho,
feliz mais ou menos
de passado a iludir de raspão
essa noite sem fim.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Olha como

olha como as rosas morrem
entre os meus frágeis dedos de nós pronunciados,
cordas marinheiras que me amarram
a este mastro onde nem uma vela persiste,
tranças de fibrosos fios e carne clara
que irremediavelmente me prendem
à minha inútil liberdade
e de ti nenhuma memória guardam.

morre a esperança com elas.
e o entusiasmo festivo das ondas.
mas antes que lhes sequem as últimas pétalas,
convocam de novo o amor como se fosse vivo
e engolem o seu único filho com a pontualidade atenta
dos melhores gageiros.

já não comem água
nem luz, estas rosas,
senão quando me vêem gesticular ansiosa,
de coração a atrapalhar os revigorados jardins
que em mim despontam,
temperados a suor e férteis como
o bolor das carcaças e o tutano dos ossos.

sacrificam-se pelo meu rumo. e ameaçam
levianamente levar com elas as tuas cores,
sinaléctica de desactivadas fortalezas que à noite
me tranquiliza e pela manhã me esmaga
de medo.

olha como oiço fados e tangos e boleros no convés
para me distrair da morte das rosas
e como afinal talvez me baste um sonho transatlântico
e uma puta filipina
para flutuar dançando
até ao futuro outra vez.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O vil poder

E eis o vil poder do amor,
transformar o possível em pranto
e o impossível em música de dança.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Reparaste a ferida

no teu coração nómada, a pesar três toneladas e meia
às vezes quatro,
quando cedias ao relento que desejava abraçar-te,
cantava aquela irreprimível vontade de amor
e uma harpa de estéreis cordas douradas.

não aparecias nos meus poemas, nem esse canto mendigo.
mas as tuas orações, não tão silenciosas quanto as minhas,
feitas para serem amplamente ouvidas
e reluzentes como as letras das canções inglesas,
já traziam metade do meu reino
levantado
entre as portas do altar.

admitias a beleza mas nunca a eternidade.
e não compreendias os prazeres da vida doméstica.
tinhas trinta e nove anos,
um casal de caturras e um ar condicionado
e acreditavas que os dias recolhidos
jamais seriam melhores que os outros que se vendem por aí,
em promoções de odisseias sem ulisses,
com gengibre e palestras e visitas guiadas a museus,
serviço de quartos e massagens incluídas.

caminhavas num júbilo disfarçado,
não fossem os remorsos ouvir-te,
e na sombra precária da compaixão
vigiavas os olhos despertos dos que nada viam
e os corpos encantados dos que pouco criavam além de tumultos.

temias pela humanidade. e pela tua inocência.
abrigavas o esquecimento na memória
e na boca, a atenção.

até que me viste,
relâmpago trivial de magros medos
e dedos aflitos, em domicílio fixo nas vastas paisagens
dos círculos ruinosos e das raízes funestas.

e reparaste a única ferida irreparável do teu ser.
para
ao trilho da inquietação, teu velho conhecido,
tornares brevemente.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Para onde

certo dia chega a manhã em que decides recomeçar.
preferes a água ao vinho, a clareza ao vício, o dia à madrugada.
e vais buscar aquele novo chá
que te ofereceram numa festa que já não recordas.

a flor que se abre nas borbulhas do bule parece-te um milagre, ainda que saibas
que o único verdadeiro milagre que conheceste,
teres amado e sido amada,
não voltará a ser mais do que um sopro difuso
na aguda consciência que reconstrois.

e bebes a infusão e recomeças.
leve como música,
as vísceras sobre a mesa, a encolher a olhos vistos
os rios de sede a morrer na garganta
a noite expulsa do sangue
e o desejo (esse antigo manto que bem reconheces,
tão bem como as outras roupas que costumas usar,
a imaginação tecidas e frescas como pedra,
a embrulhar-te de novo,
alheio a versos e aos sonhos adverso.

depois sais para a rua e apanhas a chuva toda.

o silêncio corporiza-se, a porta da casa fecha-se.

e a tua alma desata a correr
para onde trepida a vida.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

E enfim ponho um sorriso nupcial

nas pequenas dores destas meninas
as minhas penas imerecidas revejo,
e bocejo.

a banalidade do sofrimento
já só me entedia, agora que sei o pouco que se esconde
numa boca minguante para além dos beijos prometidos
e que para nada serve a gangrena nos membros,
a ternura nos braços,
o enjoo no ventre.

(prefiro telas mentirosas, e rosas e rosas.

como não escolher as unhas postiças,
as sedas orientais e os ganchos de cabelo
que elas me largam pela casa,
em vez dos pingentes de espirituosas lágrimas
que tanto anseiam que beba
?
como não mergulhar nas rendas
que sob as minhas botas ardem e pendem das gavetas,
e antes desejar as suaves emulsões
que chamam os meus lábios,
oferendas de pele nua
que é branca e seráfica
mas não tua
?

(prefiro épicos martírios, e lírios e lírios.

uma voz eclode no meu pulso,
diz-me que a glória torna ossos em vidro
e vale menos do que que um instante de vida.
eu assobio a sangue frio.
adio a memória e deslumbro-me com as obras sem autor
selvas areais pedras montanhas
coberturas de deus como os corpos
que à noite mastigo intocada contra a fome.

(prefiro abismos solares, e mares e mares.

de artérias fendidas nas pálpebras, nas vértebras,
nos seios ao espelho,
vergo-me a esta paisagem que me transfigura,
trancada no túmulo de ar onde
os meus versos persistem redondos, sem surpresa.

e enfim ponho um sorriso nupcial neste rosto viscoso
como quando te via a morrer de sonhos e interminavelmente
remexias na mala à procura da pistola,
da esmola,
ou da esperança, ou do baton.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Os nossos olhos conspiraram

na muralha dos desgostos
a hera brava cresce ainda o teu nome
e até que alguma verdade se revele
espero lentamente não conseguir o amor.

nesta altura não me meço
senão pelo tamanho do que descubro
em prólogo (ou será epílogo frouxo?
da grande conquista que hei-de abandonar.

o vale dos espelhos
(em dúvidas brandas repartido
que desde sempre nos separa
repete as mesmas perguntas desde o primeiro dia.

as nossas mãos tocaram-se
sem alternativa
e foi loucura (ou vontade turva?
a acender minúsculas luzes na cave dos sonhos.
os nossos olhos demasiado abertos
(ou cegos de tanto ver?
conspiraram contra o sol.

já passei por melhores partidas do que esta
em que mil línguas me convidam à travessia
e em alvoroço a voz do meu peito
me pede para ficar.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

De fatal, nada

partiste quando ainda tanto
tinhas para me dizer
para que eu para sempre amasse a tua boca fechada.

amor sem afagos não será amor já, sabias.
o desdém dos sábios
nos sábios se manifesta em pranto.

partiste para me ensinares o silêncio e
noutro abraço achares a tua casa.

de fatal, nada.
infame crime só o sorriso marmóreo e
as verdades inúteis que inscreveste
nos meus olhos mordidos de poeira.

partiste com razão.
pisando violetas lírios escrituras pelo caminho.

não sabias que
partir por partir é a suprema liberdade.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A expiar

na trincheira do luto,
dentro desse quarto desabitado à espera de altar
onde nunca as crianças brincaram,
sou uma menina travessa à espreita
entre o armário das botas e a bicicleta.

rasgo as roupas ao gato e confundo hormonas com problemas,
eros e psique em guerrilha,
enquanto te vejo agir como se não soubesses
que todos os dias se morre de fome,
até nas esquinas do teu bairro.

entretenho-me a remover verrugas do pénis
que mora na minha cabeça.
não sei que mais faça
mas noto que o meu ritmo cardíaco desacelera.

o truque é entrar pelo flanco, penso,
nunca de frente, de peito aberto,
sei que te assusta a vulnerabilidade dos que amas.

tenho sintomas de demência,
hemorragias de emoções misturadas com conceitos.
mas sinto ainda o desejo a atalhar caminho fora de nós
e a conduzir-nos precariamente ao futuro.

rapo as axilas, tomo vitaminas,
pestanejo de vez em quando, sem ruído, à espera de ser infectada.
o teu hálito é a bactéria que o meu corpo chama,
escravo do que quer dar ao teu.

mas desidrato de desatenção.
sei que preferias perder uma perna a aceitar-me nos teus braços.

rastejo em silêncio até ao fogão.
a indução está em marcha
e eu detenho os olhos nos leds psicadélicos atrás dos vidros,
nos cordões de arame que suspendem a luz,
nos bancos novos sob o balcão.
procuro os turcos que arrumei nas prateleiras da cozinha,
verifico o prazo de validade dos orégãos,
o estado da chaleira e o aroma do chá.
não encontro aspirador,
talvez ainda varras o chão semanalmente,
horas antes do ritual das vozes em coro
que descem escada abaixo,
incomodam os vizinhos
e num eco estrangeiro tomam o mundo.

doem-te as costas e o coração e as ideias, mas não podes parar.
és um adágio de vida compulsiva com a sorte de uma carreira,
instinto material herdado da miséria
e duas espadas de dois gumes
aquáticos, pendentes do tecto,
plástico azul a rodopiar na marquise que te vê dormir.

servem-me de chuveiro quando sais para o trabalho.
a banheira sempre foi grande de mais para mim.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Clamor

levo-te à praia,
as nossas mãos coladas os pés descalços o frio nos ossos.

é inverno e a ternura invisível no infinito do cosmos.

sabes tudo o que não fazes e gostarias,
o que te sobra no coração e há muito deveria estar extinto.
mas para dizer só encontras o avesso do que sentes.

falas das feras dos dentes do álcool da razão
da neurose social em que vivemos,
das fontes de prazer imediato.
a tua infantil cartilha de valores
a estatelar-se contra a minha inconsequência.

temes a velhice e as dores de cabeça.
as nuvens que se estendem na tua íris
de transparência agasalhada
vendam-te ao sol de janeiro,
o meu corpo em silêncio lembra-te o beijo do rodin
e em surdina ouves dEUS:
nada nunca termina a martelar na tua vontade férrea de mudança.

já na cabana brindamos ao passado.
a minha esperança a prometer o impossível,
a tua sede a contratar os serviços do diabo no fundo do copo.
e o futuro como paisagem de turner,
desfocado a afiar as garras
neste instante em que somos almas concretas
a tocar-se sem horizonte.

o peso do mal que me fizeste tem dez arrobas de profundidade, dizes. e eu digo,
a crueldade é sensual como a preguiça.

deitamo-nos então com essa herança na carne.
o pó celestial que até aqui nos trouxe
faz-se ode branca no tempero do amor
e o suor desliza-nos nos poros
como se adivinhasse o estio que desejámos para os nossos olhos
livres de idílios sonhados que jamais terão lugar no mundo.

e dormimos em concha
com o clamor repetido das ondas aninhado no peito.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A luta

a fantasia definhou, amor,
os morangos já não descem pelo teu corpo,
deus nenhum nos convida para a sua ceia de fruta nova
e elfos gordos
nuvens trampolins e pratos de sal
mas os meus dedos caminhantes ainda exultam no teu rosto.

lambo a tinta das fotografias
e delas recorto o aroma distante da tua boca.
mordo-me entre as paredes vazias,
aliso-me como camisa
de pele nua,
danço piano, a carnivalsa sem tempo,
e páro antes que desapareça.

volta para casa, apetece-me dizer-te, apertando os lábios
contra a mordaça do silêncio, insone de pés gelados
e admirando a juventude com que ensaboas o olhar
antes de o passares pela torneira da ilusão.

e amo esta luta sem sangue e calada onde
à noite te procuro em todos os bares
e aliviada me sinto por não te ver,
sem sair desta cadeira de pau brando.

hesito. morro. venho-me às mãos do vento.
e demolho o coração em copos de vinho tinto.

sei que é cedo para a primavera embora já oiça
o seu murmúrio à minha porta.
mas não sei se a deixe entrar.
sou da terra como erva
e ainda me lembro de quando era um cadáver diferente,
firme de segredos e olhos secos.

hoje ainda prefiro ser este, amor,
que a lua vê e este telhado sem estrelas guarda.

ajusto o meu desejo ao teu e faço login.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Em paz

poesia é ofício artesanal (cesto de vime, bordado a cor:
cada verso contém a vida mas demora a revelar-se,
quase tanto como ela a consumir-se.

e eu que nunca deixei de ser tua e portanto minha
jamais poderei ser também,
aqui permaneço redundância
a pingar sobre o lago de narciso e a dormir
como a bela, sorrindo
só por guardar entre os dentes a memória do teu beijo –
esse instante de veludo em que as palavras, minhas e tuas
se misturaram, inscrevendo amor eterno
no aço branco das janelas.

sempre na mira da solidão,
de tambores no peito e consciente de que
toda a promessa de eternidade é fugaz
e todo o poeta divino, ardentemente desejo largar tudo e
tornar-me música, só para planar na tua sala.

e aprendo que o amor é oferenda
apenas a quem não teme o silêncio e se inclina
perante a clareza simples das flores,
em serena alegria acolhendo a neve nos cabelos.

o sonho recolhe-se à crosta materna
de que a minha sofreguidão se veste.
olho a dispersão do vento, em paz,
lanço as sementes do inefável
ao coração e ouço o sangue correr – agora que
nada mais em mim corre.

e ergo-me entre as montanhas.
consegues ver-me?

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

É isto

e a felicidade é isto. este cigarro em jejum, olhar o céu esparramado sobre os telhados, operários em passo de corrida para a estação, ocasionais gaivotas a roubar-me o aceno aos melros, candeeiros trôpegos sobre o parque de estacionamento.
e a paz dentro de casa e da alma.
as crianças dormem ainda com os seus sonhos de algodão e plástico, sem saberem que são a forma mais banal de obra de arte, desejo de criação tornado carne,
como poemas à espera de serem cantados.

e então o cigarro termina.
empunho a espada e o verbo e a ansiedade força-me ao movimento. preferia ser guiada pela paixão, mesmo recordando quanto doi. em vez disso fabrico alegria todas as manhãs, e pergunto-me até que ponto devo preocupar-me
com a miséria ou a dor dos outros.

antes da vida me ter estragado, a minha mãe sabia tudo, eu confiava nela, o mundo inteiro cabia numa canção de embalar. e a voz excessiva do meu pai mantinha-me nas margens dos abismos: o amor impedia-me de cair.

agora hesito entre o entusiasmo e a esperança. sei que não podem coabitar e a escolha tolhe-me. mas permaneço alerta.
o resto do meu tempo à vista, a pulsão de respirar.
e o medo como disfarce, da espessura de uma casca de noz
sobre a pele.

o duche faz-me chorar. trago demasiadas memórias aquáticas para resistir a lavar a cinza dos olhos. o espelho encontra-me de rosto parado e lábios conscientes,
tudo o que fiz vincado a sul de cada extremidade.
mas ainda quero vencer o dia.

antes da vida me ter estragado, eu podia amar o que quisesse,
até personagens de teatro e troncos de árvores,
até segredos maldosos e fotografias.
e a felicidade tinha nome, sonhos possíveis de todas as cores, absinto eficaz a afogar tormentas. e cães pacientes,
deusas amputadas, quartos de ternura.
saudade nenhuma.

acordo a casa num sorriso de anjo robusto.
e a felicidade é isto. poder ser.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Velas

quando a voragem do mundo nos tiver saciado
seremos felizes.

felizes. raízes cegas às sombras
da ramagem rumo ao sol.
felizes. grãos de areia à solta
no rebuliço da rebentação de agosto.

e esse teu olhar de fio de prata
(que apetece tomar
será sempre horizonte. e a solidão
(todo o espaço onde faltas
ruidosa como outra companhia qualquer
nas velas que hão-de demorar a arder
em cada bolo de aniversário
(na sala sem desejos onde jamais doem os abraços.

à mesa
nata e chocolate e torpor
e almofadas onde cair.