quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

É isto

e a felicidade é isto. este cigarro em jejum, olhar o céu esparramado sobre os telhados, operários em passo de corrida para a estação, ocasionais gaivotas a roubar-me o aceno aos melros, candeeiros trôpegos sobre o parque de estacionamento.
e a paz dentro de casa e da alma.
as crianças dormem ainda com os seus sonhos de algodão e plástico, sem saberem que são a forma mais banal de obra de arte, desejo de criação tornado carne,
como poemas à espera de serem cantados.

e então o cigarro termina.
empunho a espada e o verbo e a ansiedade força-me ao movimento. preferia ser guiada pela paixão, mesmo recordando quanto doi. em vez disso fabrico alegria todas as manhãs, e pergunto-me até que ponto devo preocupar-me
com a miséria ou a dor dos outros.

antes da vida me ter estragado, a minha mãe sabia tudo, eu confiava nela, o mundo inteiro cabia numa canção de embalar. e a voz excessiva do meu pai mantinha-me nas margens dos abismos: o amor impedia-me de cair.

agora hesito entre o entusiasmo e a esperança. sei que não podem coabitar e a escolha tolhe-me. mas permaneço alerta.
o resto do meu tempo à vista, a pulsão de respirar.
e o medo como disfarce, da espessura de uma casca de noz
sobre a pele.

o duche faz-me chorar. trago demasiadas memórias aquáticas para resistir a lavar a cinza dos olhos. o espelho encontra-me de rosto parado e lábios conscientes,
tudo o que fiz vincado a sul de cada extremidade.
mas ainda quero vencer o dia.

antes da vida me ter estragado, eu podia amar o que quisesse,
até personagens de teatro e troncos de árvores,
até segredos maldosos e fotografias.
e a felicidade tinha nome, sonhos possíveis de todas as cores, absinto eficaz a afogar tormentas. e cães pacientes,
deusas amputadas, quartos de ternura.
saudade nenhuma.

acordo a casa num sorriso de anjo robusto.
e a felicidade é isto. poder ser.

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