sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Ciclo

na sombra estreita do chicote, com a cara encostada aos mosaicos gelados da cozinha e as pernas em abandono, recupero lentamente os sentidos.
levanto-me a custo, de cabeça em vorazes vagas e asas paradas.
despejo no ralo do lava-loiça as lágrimas que deixaste no dedal de prata e tiro a tua fotografia da almofada dos alfinetes.
num compartimento da caixa de costura, entre a tesoura e os colchetes, arrumo as tuas contas. e na primeira gaveta da cómoda escondo os teus olhos com roupa interior.
ontem à noite, depois de partires, o copo esvaiu-se em whisky na minha boca e fixou-me o pensamento à tua ausência.
mergulhei para cima e colidi com um cometa. ainda tentei agarrar-me a uma nuvem, mas ela desfez-se-me entre os dedos. lembrei-me do teu riso por momentos, a viajar num autocarro de dois andares e muitos segredos.
e fiquei a ouvir a lua a passar, num rasgo de genuína humanidade.
hoje desperto de pregos no esterno e agulhas no estômago.
meio termo entre árvore e pássaro, em voo inerte desapareço.
amanhã renasço-me em sangue, rente ao teu osso.

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