terça-feira, 29 de maio de 2007

As rosas

arrancaste os espinhos às rosas, um a um, com a cautela de quem atravessa uma estrada, e misturaste-os com as beatas no cinzeiro de alabastro. enfiaste os caules nus na lata dos pincéis gastos e na taça de vidro arco-íris juntaste algumas pétalas à acelga e aos agriões, que temperaste com o vinagrete do dia anterior, esperando que eu comesse.
das restantes pétalas fizeste uma grinalda para enfeitares os cabelos. depois, pegaste no casaco, esbofeteaste-me com uma folha verde-desdém em forma de gargalhada e saíste de casa.
fiquei à tua espera durante muito tempo, a alinhavar palavras em agendas antigas, até chegar ao osso das sílabas e ao ciciar dos pontos finais.
consegui resistir aos sulcos das balas na cabeça, ao vinco do cinto de cabedal no pescoço, ao choque da torradeira no banho de imersão, aos golpes nos pulsos cortados lentamente, ao estrondo da queda vertiginosa do sexto andar, à digestão da caixa de comprimidos, à incisão da faca na barriga.
e tornei-me cúmplice das longínquas videiras em socalco, derramando vinho na língua enquanto espetava alfinetes no teu retrato e te chorava eternamente noutros braços, nos braços dos meus imprestáveis solilóquios, tecidos noite a noite pelas aranhas já conformadas do meu cérebro.
mas naquela manhã de ofuscante luminosidade, em que tinha acabado de esfregar os tapetes e de arrumar de vez o teu material de pintura e as janelas se abriam ao vento como há muito não acontecia, ouvi a fechadura da porta e senti o aroma das rosas a invadir a casa num lance.
penduraste a grinalda por cima do casaco no cabide do bengaleiro arte nova e cuspiste-me um pássaro de mel sorridente.
disseste: nunca mereci o teu amor.
e eu disse: o vento escreve o teu destino no curso dos rios.
então ofereceste-me a tua boca e o meu coração encheu-se novamente de pólvora e de flores e de gestos de mar.

6 comentários:

Mei disse...

oohhh... Hoje não há história? :( Gosto de bengaleiros arte nova e de pássaros de mel sorridentes *

Berta Cem Mil disse...

se pedires muito muito, talvez ainda apareça até à noite...

Mei disse...

humm... then you wanna see me begging?...

Berta Cem Mil disse...

begging? no. but crawling... why not?

Mei disse...

oh well. let's see what we can do about that. meanwhile keep writing something for us to read, dear.

Berta Cem Mil disse...

let's see what I can do about that... maybe after midnight, dear.