quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

No alpendre

naquela tarde solarenga, comias nêsperas excessivamente maduras com o ar grave de quem resolve os mistérios do universo. o golden retriever enroscado aos teus pés respirava profundamente, como se dormisse. e havia pólen quase visível a estremecer no ar espesso à volta dos teus cabelos.
eras a imagem pura da beleza e eu absorvia a tua presença inteira, recostada na cadeira de baloiço do alpendre. dormitava de livro aberto à frente, ocasionalmente juntando sílabas e ideias e versos na lenta passagem das horas.
às vezes cruzava as pernas e fechava os olhos. às vezes inclinava-me ligeiramente para a direita, apoiada no meu mais frágil flanco, para conseguir ver-te melhor. e às vezes pegava no copo de gin e levava-o aos lábios em silêncio.
e o mundo corria entretanto, fora de nós e do nosso tempo, aquele tempo em que já mal falávamos porque tudo era límpido e concreto e todas as palavras desnecessárias.
o amor é um direito, disseste tu entre duas nêsperas.
só então percebi o teu ar grave de quem resolve os mistérios do universo. mas limitei-me a sorrir, mordendo o pólen do éter e sentindo-o estalar na frescura do gin, rente aos dentes.
e depois fechei o livro.

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