quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Fuligem

aquele olhar transbordava de fuligem.
há anos que a nau dos destinos fáceis passava lá os seus verões. também havia uma névoa, uma espécie de véu intrincado, transparente e ao mesmo tempo lavrado, entrançado talvez, como a mousse das collants.
não era um olhar louco. não era um olhar frio. nem um olhar aéreo. não era um olhar lesto nem lento. quanto a velocidade, nada mais do que normal. até no pestanejar.
mas transbordava de fuligem. pulverizava o quarto de um pó muito fino e escuro, que custava a sair.
e, ainda assim, lutava.
havia uma minúscula parcela indómita que lutava.
às vezes reverberava e agitava-se como um desenfreado comboio pensante, um circo completo de carruagens sobrelotadas, qual brinquedo burguês, por milagre encafuado
(nem mais um pixel lá caberia) num ínfimo e íntimo compartimento concreto de cada um dos olhos.

eram olhos que falavam e ouviam.
mas cegos como vidro. como as palavras.

um dia, o olhar disse:
devia ter sido mais leve, devia ter sido mais longo. ou belo.
e escutou: a corda que amarra é a mesma que rompe.
então o olhar fechou-se com as suas chagas e contradições.
carregava fuligem, como se nunca tivesse sido usado.
mas podia ainda atravessar o inverno e desejar o amor.
podia refazer-se. ou parar de lutar.

Sem comentários: