domingo, 15 de abril de 2018

Desamparo

ao compreenderes que o amor longevo
adormece a mais natural inquietação,
a teia de mistérios que impele à busca de um sentido para os dias,
iniciaste o processo de despojamento.

a solidão não é menos trágica que o tédio, disseste.

com o pouco que te restou
em três malas de viagem
partiste, renunciando à felicidade
nos braços da poesia.

as chagas no peito cicatrizaram, secou o desejo,
a inquietação transformou-se numa máscara de éter colada ao rosto,
o sentido persistiu incomunicável, mas
pelo menos
sentias-te desperta.

fundias-te no mundo e
enquanto cobrias de cinza os meus olhos na fotografia
e no oblívio deitavas a memória dos meus beijos
para que te fosse menos penosa a demanda
eu continuava a escrever as mesmas linhas sentimentais
guardando objectos e livros e imagens como se fossem importantes
e pudessem arrancar-me à terra,
certeza concreta,
dura e fértil como os primeiros instantes do amor,
esses instantes inquietos, à imagem da natureza.

um dia preveni-te.
a morte muda de voz, reconhece a tragédia.

tu sorriste
de costas para o espelho, não fosses reparar nas rugas,

e não quiseste ouvir-me.
paz à tua alma.

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