segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Mosto

este precioso amor em gotas de suor aromático se multiplica, desfaz e refaz. o ritmo é lento, como a branda fermentação das uvas no lagar. e o sabor tem a doçura da inocência, a espessura da hesitação, a pureza da infância.
e desliza na minha pele como a minha pele na tua.

o tempo está à espreita e ameaça passar,
atravessar o vidro e abraçar-te, sobrevoar a cama e beijar-me, escavar o chão e tomar-nos.
eu embrulho-me nos teus cabelos e não o detenho.
ele que passe e abrace e beije e escave. e nos tome.
como só ele sabe.
um dia há-de calar-nos para sempre e converter-nos num minuto de memória na memória de alguém.
não sei quem, não sei quando, mas sei.

somos de castas seleccionadas, dizes.
e eu digo: a vida poda-nos como pode, até à seiva.

tu embrulhas-te nos meus dedos e espreitas o tempo em espasmos. assobias como se o ignorasses e perguntas a ti mesma para onde vais. e ris-te dos meus projectos e da minha lúcida embriaguez. e das lacunas das minhas convicções. e das vozes ensurdecedoras do meu silêncio. e das verborreicas rugas do meu pensamento.
e ocultas-me os sonhos que tens.
temes não ter tempo ou talento ou gosto para os viveres.
um dia.

quanto mais envelheço menos me entendo, dizes.
e eu digo: somos novas como mosto.

na varanda desfraldada sobre o curso das horas, encontro-te finalmente. desafectada, a tomar chá com sanduíches de atum e quadrados de chocolate. e a devolver milagres inúteis às nuvens que tos choveram.
e então vestes-te de partida. à saída, paras à porta e dizes:
um dia seremos vinho.

um dia longínquo. um dia incerto. e vulgar talvez.

seremos sim, digo eu,
de fragrância sublime e origem descontrolada.

sangue silvestre.

3 comentários:

Anónimo disse...

brilhante!! cada vez melhor como outra espécie de vinho...

Anónimo disse...

adoro a tua escrita embriagantemente lúcida.

Placi disse...

já soube o sabor desse mel

Bom texto