terça-feira, 24 de julho de 2018

O tempo livre

enquanto recortas papéis e os reinventas,
absorta,
esculpindo figuras do teu inesgotável mundo interior,
numa intensa labuta de quem conquista o espaço,
eu, terrestre como uma ilha,
migo legumes
e aprendo as castas das uvas
e vou às compras
e amanho peixes
e preocupo-me com a combinação de cores da marinada.

este é o tempo livre, dizes,
picando a ponta do polegar no bico da tesoura
como se procurasses verificar se sonhas,
tão leve te sentes.

todo o meu tempo está preso a ti, digo eu, toda orgulho e serenidade,
e levo o copo ao nariz, ou o nariz ao copo, nem sei bem ou se tanto faz,
mergulhando nos aromas de um distinto avesso,
dourado mas verde
de nome
tomado às encostas de onde vem.

pousas a tesoura
e por instantes analisas a menina alada no centro da tua obra,
depois corriges o gancho no cabelo
e estendes-me as mãos, oferecendo-me a boca
num movimento tão suave e natural como o das ondas.

o teu decote incita ao desejo, os teus olhos lambuzam-me de alegria,
a tua língua sabe-me a urgência,
e ali mesmo, atravessando o nosso quotidiano sem calendário,
um anel solar, vindo da janela, envolve-te os dedos
e veste-te de uma luz muito doce, quase silenciosa,
tão fina e translúcida como o cristal que encostas aos lábios,
esses lábios por mim beijados a todas as horas do dia.

vejo o amanhã e não ė voraz mas tranquilo, dizes, sorrindo.
e brindamos ao tempo livre, todo o que nos resta,
ansiamos muito,
o meu preso a ti,
o teu sublimado em gotas de amor à temperatura certa,
vivaças como o orvalho e a bolha do vinho.

sento-me à mesa.
almoçamos?

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