segunda-feira, 27 de maio de 2024

E depois do adeus

por vezes ainda saio de casa, 

para caminhar,

esticar as pernas, 

arejar os ossos,

tonificar os músculos.


dizem-me que é um remédio para esta tristeza funda, 

tal como praticar o convívio, 

rir, misturar-me nas coisas,

desafiar o intelecto.


mas os cheiros do mundo agoniam-me 

e o ruído constante impele-me a recolher de novo 

ao idílico planeta 

do pensamento doméstico.


concentro-me nele e caio

sem amparo 

no teu abraço gelado como a morte.


encaracolando-me, 

arfante, culpada,

no espaço exíguo entre o meu corpo encolhido 

e o teu colo hostil,

dou lastro à memória dos nossos instantes felizes, 

na realidade para sempre perdidos

no martírio da saudade.


e aqui me deixo ficar,

imóvel, só, vazia,

até amanhã, depois de amanhã, depois da vida, 

como se soubesse quem sou, ou fui, ou serei, 

e que há futuro em mim 

depois do amor, 

depois de nós, 

depois de ti.


sexta-feira, 24 de maio de 2024

Pássaros nos olhos

naquele tempo trazias pedras da beira-mar para decorares as janelas 
e pássaros nos olhos para não me veres voar. 

dessa cegueira à seguinte era apenas uma estação. 
tu sabias 
e mesmo assim deixaste-a passar. 

eu tinha as asas presas à nossa casa de sonhos 
e amava-te nela como se fosse real, 
com os sentidos embotados 
pelas tuas certezas e as minhas contradições. 
estarei sempre aqui e lá fora, dizia, 
enquanto podava as orquídeas e enchia o copo mais uma vez, 
ébria já, fechada em mim, surda ao teu desejo. 

mas não mentia. 

outra estação passou e eis-me no mesmo lugar 
a olhar para o teu pedregoso silêncio. 

sei como ele é certo e justo e merecido 
e por isso abraço-o como os oceanos aos rios 
as mães aos bebés 
a terra às raízes. 

já não há espaço nas janelas 
nem pássaros que fiquem parados 
à espera 
até que eu me decida a habitar-te. 

mas ainda há tempo para voltares a ver.